No domingo da Santíssima Trindade que há pouco celebramos, proclamamos o conteúdo maior e central de nossa fé. Não cremos em um Deus isolado em seu céu, mas em um Deus que é comunhão de pessoas, um só Deus em três pessoas divinas.
A questão de Deus é uma das mais delicadas a serem tratadas hoje pela Teologia e pela Pastoral. Se a fé trinitária num Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo é a marca original do Cristianismo, claro está que dela a fé cristã não pode abrir mão, sob pena de renegar-se a si mesma. Por outro lado, como falar trinitariamente de Deus e poder ser entendido num mundo plural, onde se deve entrar em diálogo com outras religiões e outras propostas alternativas de vida e de crença?
É nesse ponto que a teologia entra com aquilo que é especificamente seu, com a palavra própria que só ela pode dizer. E quando aquilo sobre o qual se quer falar é Deus, está se tratando com Aquele que é a razão de ser mesmo da teologia, aquilo sem o qual ela não existiria, nem poderia se entender a si própria.
Falar de Deus, então, é possível porque ele falou primeiro de Si mesmo. Ele se revelou como Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. E sabemos disso porque lemos a Bíblia, escutamos a Igreja e prestamos atenção na experiência de Deus em nós e nas outras pessoas. Mas falar sobre isto que lemos na Bíblia, que escutamos dentro da Igreja e que sentimos em nós e nos outros só é possível em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
É isso que o Credo, o Símbolo da nossa fé diz: Creio no Pai, Creio no Filho, Creio no Espírito Santo. Partindo, pois, desses três artigos fundamentais da fé cristã, pode-se perceber como a partir deles vai tomando corpo o processo de acontecimento da teologia.
Deus é Pai. Com isso queremos dizer que cremos num só Deus, que é Transcendência, criação, fonte escondida, origem sem origem, mistério fontal do qual tudo provém e ao qual tudo retorna. É aquele mistério que não entendemos mas sentimos que nos abraça, nos cria, nos mantém vivos a cada minuto da nossa existência. Porém como dirá o evangelho de Mateus, só quem conhece o Pai é o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar. Portanto, para conhecer que Deus é Pai e chamar Deus de Pai, é preciso conhecer o Filho. Uma religião que fosse só do Pai esbarraria na incompreensibilidade do mistério que não se pode ver sem morrer. Mais: diante deste mistério tremeríamos de medo e não ousaríamos sequer dar-lhe nome, quanto mais chamá-lo Pai, essa palavra carinhosa e íntima que as crianças utilizam diante de seus genitores. A teologia só é possível porque Deus é Filho.
Deus é Filho. O conteúdo “Deus é Pai” foi manifestado no e pelo Filho. No Filho, Deus se torna um de nós, se torna carne e se faz humano conosco e como nós. Se a razão disso não dá conta, trata-se de algo só possível de ser aceito na fé. Assim, acolhe-se o fato histórico Jesus de Nazaré e se confessa que nele, neste homem galileu, filho de Maria, se deu a manifestação total e definitiva de Deus. Esse homem que viveu e foi morto e executado em Jerusalém foi ressuscitado pelo Deus que chamava de Pai e constituído Senhor e Cristo. Não se trata mais de uma revelação de Deus, mas do próprio Deus revelado.
Porém, mais de vinte séculos nos separam do Jesus histórico. Jesus Cristo não corre o risco de se tornar um fato a mais perdido na noite dos tempos? Ou um personagem histórico entre tantos outros? Como é possível – a essa distância – conhecê-lo, imitá-lo, segui-lo, e mais ainda, fazer teologia sobre Ele? Isso só é possível se se abre uma terceira via da Revelação desse Deus.
Deus é Espírito Santo. O Filho só revela o Pai pelo Espírito. E a comunidade cristã só reconhece e proclama o homem Jesus como Filho de Deus após a Ressurreição, pelo Espírito. Na sua morte e ressurreição, Jesus doa seu Espírito a quem n´Ele crer.
Esse Espírito é do Pai e do Filho, e habita no ser humano. Faz do ser humano Seu Templo, inspira-o, cristifica-o, diviniza-o, configura-o ao Filho e o faz filho também, possibilitando-lhe então chamar Deus de Pai como Jesus chamava.
A fé que é gerada pela inhabitação desse Espírito em cada homem e cada mulher pode, então, ajudar a entrar em comunhão com o Deus que é comunhão em Si mesmo. O próprio Deus, Espírito que habita em nós, vai nos dando essa possibilidade.
Em Jesus Cristo e pelo Seu Espírito, o caminho para Deus – novo e vivo! – é a própria humanidade. Caiu o véu que no templo separava o ser humano do acesso à presença de Deus. O ser humano agora – seja ele judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher pode aproximar-se de Deus e falar sobre Ele. O Espírito foi derramado e a Teologia é possível. O teólogo original é o Espírito Santo, que está em nós, nas comunidades, no povo, no mundo, na história.
O Deus da Revelação, a Santíssima Trindade, portanto, é o mistério da comunidade das pessoas divinas, mistério de fé, de salvação, de comunhão e de amor. Não é e não pode ser lógico porque justamente funda uma lógica nova: a lógica da gratuidade, do amor, do Dom.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ, teóloga e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)