“O vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do Espírito”(João 3.8). Foi assim que Jesus descreveu como são as pessoas nascidas e inspiradas pelo Espírito. E é a partir desse mistério profético do vento, que neste mês março, tempo de celebração da luta dos movimentos feministas, é importante falarmos sobre a importância da participação feminina evangélica nos movimentos sociais.
Os movimentos sociais nos ensinam sobre levantar nossa voz, partilhar poder e promover o bem coletivo. A importância das metodologias dos movimentos sociais no processo de autoformação política de nós, mulheres evangélicas, com seus modos de ser e fazer a comunidade nos proporciona a abertura de consciência necessária e amplia nossa percepção para o caminhar em direção às mudanças sociais segundo os princípios de amor, compaixão e respeito do Evangelho.
Esses modos de ser e fazer, permeados por metodologias alternativas, criativas e dialógicas, nos permitem aprendizagens que são indispensáveis nos contextos e ambientes em que precisamos negociar e disputar a fala e o poder. Ou ainda, resistir às microviolências naturalizadas cotidianamente em inúmeros espaços religiosos, especialmente praticadas por pessoas reacionárias e conservadoras.
A partir dos escritos da educadora Maria da Glória Gohn (1992)[1] eu quero destacar pelo menos três aprendizagens que são frutos de alguns processos educativos vivenciados nos movimentos sociais:
1) da aprendizagem gerada com a experiência de contato com fontes de exercício de poder: Poder é uma palavra quase inexistente no vocabulário cotidiano feminino. Embora exerçamos nosso poder humano todos os dias, na vida cotidiana, as hierarquias inventadas ao longo da história limitam nosso alcance de influenciar tomadas de decisão cruciais para nossas vidas como cidadãs e membras de famílias. Participar dos movimentos sociais nos ensina sobre como usar nosso poder pessoal para reivindicar de tomadores de decisão, aquilo que é nosso e que é todos por direito humano!
2) da aprendizagem das diferenças existentes na realidade social a partir da percepção das distinções nos tratamentos que os diferentes grupos sociais recebem de suas demandas: Aprendemos nos movimentos sociais o quanto os direitos das mulheres são secundarizados em relação às urgências das nossas necessidades – Mulheres são assassinadas todos os dias pelo machismo! – E descobrimos isso ao compreender politicamente que estamos sobrecarregadas quando adiam nossas prioridades cada vez que algum poder (masculino) estabelecido nos diz: agora não! Percebemos isso quando aqueles assuntos onde há maior número de homens governando e deliberando são rapidamente resolvidas enquanto nosso tratamento de saúde contra o câncer ou segurança alimentar é ameaçado pela corrupção nunca resolvida.
3) da aprendizagem da desmistificação da autoridade como sinônimo de competência, a qual seria identificada como sinônimo de conhecimento: E aprendemos também que a competência pode ser desenvolvida e habilidades podem ser adquiridas em cada uma de nós, mulheres cidadãs, educadas para o sustento e cuidado do lar e nunca para a tomada de decisão política pública. Percebemos que aqueles “homens de bem” que se perpetuam no poder com nossos votos nada mais são do que fruto de uma longa tradição de figuras masculinas no poder – geralmente cristãos – que nunca nos ajudaram radicalmente.
Então, por isso, os movimentos sociais são espaços mais seguros para uma livre atuação antissexista e antirracista para as mulheres evangélicas. Pois neles, aprendemos também a desestabilizar e tensionar os condicionantes hierárquicos que perpetuam práticas violentas contra as mulheres.
A teologia eurocentrada marginaliza, criminaliza a incidência dos movimentos sociais na reivindicação por direitos e justiça social. Igrejas são espaços institucionais, humanos e falíveis onde a violência circula sutil e silenciosamente entre hinos de louvores e sermões inspiradores! Como parte dessa comunidade, temos o compromisso de permanentemente falar contra as injustiças cometidas contra nós e contra qualquer pessoa.
A presença das pessoas que reconhecem na fé, no místico e na espiritualidade a fonte de sua ação política, nos convida ao diálogo, e afugenta a intolerância e o ódio que são frutos de um “ensimesmamento” doentio e colonial. De outra maneira, percebo como a nossa inserção, enquanto pessoas religiosas progressistas, proporciona aos movimentos sociais uma ampliação de seu repertório político, a importância do diálogo contínuo, a pluralidade e a inclusão de novas vozes e novos aprendizados e a aproximação com a realidade através do relacionamento orgânico.
Quando as mulheres introduzem a fé, a escuta, a amorosidade e o diálogo como práticas políticas do ensinar-aprender no movimento social progressista evangélico podemos experimentar um processo de amadurecimento, cura e expansão interior, nem sempre prazerosos, mas necessários à liberdade para que Cristo nos chamou.
Combater a colonialidade do poder, a colonialidade do saber e a colonialidade do ser em contexto eurocêntrico, falocêntrico, androcêntrico e machista como o religioso protestante é uma tarefa “até que todas sejamos livres” sem data para encerrar. É essa mesma colonialidade que afeta as relações de poder entre nós mulheres de todas as cores, etnias e credos. É ela que gera entre nós disputa e incompreensões, dissensões e hierarquias de opressões e que de fato, fragmenta as lutas feministas e das mulheres.
Especialmente, a participação política protagonizada por nós, mulheres negras evangélicas progressistas, está intimamente relacionada com o trazer para o centro da reflexão e da metanóia cristã a força e dignidade de nossa ancestralidade, africana e indígena. Não suportamos mais os vieses de uma concepção racista e colonizadora da fé. Não suportamos mais a superficialidade nefasta do mito da democracia racial no Brasil em nossas comunidades de fé!
É dessa maneira que a partir dos movimentos sociais, sopramos como o vento. Germinamos a semente plantada em nós através do Evangelho e Jesus Cristo: a semente da vida na humanidade plena. Por isso, nossa luta é sobre vivência de abundância de justiça e paz para todas as pessoas. O amor é chave para todo processo de mudança social e humanização das relações adoecidas, como em “Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade”, da bell hooks onde a ação revolucionária baseia-se no amor e no diálogo cultivado através de uma educação engajada. Só amor pode curar a humanidade da barbárie das opressões. Só o Amor radical pode curar a igreja evangélica brasileira adoecida pelo poder e pela ambição. Eis o nosso desafio fronteiriço entre espaços religiosos e movimentos sociais de luta e resistências.
[1] Maria da Glória Gohn (2014) Educação Não-Formal, Aprendizagens Saberes em Processos Participativos. – Investigar em Educação IIª Série, Número 1, 2014.
Mulher negra afroindígena, nordestina e evangélica Vanessa Barboza é integrante do Movimento Negro Evangélico e da coordenação da Rede de Mulheres Negras Evangélicas, doutoranda em Ciências da Religião (UMESP), Mestra em Educação, Culturas e Identidades (UFRPE) e Bacharel em Serviço Social (UFPE) integra o Programa Indivíduos Inspirados da Tearfund.
¹É muito maravilhoso ver tanta vida em movimento no meio desta diversidade: pessoas, cores, flores, luzes, falas, ecos…
Mesmo distante a gente se sente junto.