Cuba se prepara para aprovar uma nova Constituição que trará importantes novidades ao país, como a adoção do parlamentarismo, novas formas de economia mista e o reconhecimento da união homoafetiva.
A atual Constituição foi aprovada em 1976 e revela forte influência das Cartas Magnas dos países socialistas do Leste europeu, em especial da União Soviética. Agora, ampla mobilização nacional promove nova reforma constitucional. No momento em que escrevo, novembro de 2018, o anteprojeto está sendo submetido à consulta popular e, em seguida, será referendado pela população mediante voto livre, direto e secreto.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, a Constituição cubana sofreu importante reforma em 1992, quando, por exemplo, se retirou o caráter ateu do Estado para introduzir o caráter laico. Fez-se ainda pequena reforma em 2002, ao blindar o caráter socialista da Revolução.
Diante das teses aprovadas no VI Congresso do Partido Comunista de Cuba, em 2011, ocorreram mudanças no modelo econômico e na organização partidária, o que suscitou a necessidade de nova reforma da Constituição.
Em maio de 2013, o Birô Político criou o Grupo de Trabalho, presidido por Raúl Castro, para debater o aprimoramento institucional do país. Durante um ano o grupo preparou as bases do atual processo de reforma, aprovadas em junho de 2014.
Analisaram-se os impactos de ordem jurídica nas reformas ocorridas no Vietnam e na China. Levaram-se em conta também as reformas constitucionais de Venezuela, Bolívia e Equador.
O resultado desses estudos foram analisados, em fevereiro deste ano, pelo Birô Político e, um mês depois, pelo Comitê Central do Partido. Em seguida, o Conselho de Estado, órgão de representação permanente da Assembleia Nacional do Poder Popular (equivalente ao nosso Congresso Nacional), convocou sessão extraordinária para dar início ao processo de reforma, o que aconteceu em dia 2 de junho. O parlamento instituiu a comissão encarregada de preparar o novo projeto constitucional.
Um mês depois, um esboço foi submetido à Assembleia Nacional, que recolheu diversas críticas e propostas. A população acompanhou os debates por TV e outros meios de comunicação. O parlamento decidiu, então, submeter o texto à consulta popular, de modo a enriquecê-lo com a participação direta do povo, incluídos cidadãos cubanos residentes no exterior.
O que se debate agora em todo o país não é uma reforma do texto constitucional vigente, mas a aprovação de um novo texto que visa a introduzir mudanças profundas na estrutura do Estado e ampliar o leque de direitos de cidadania, sem prejuízo do caráter socialista da Revolução.
O texto propositivo contém 224 artigos (87 a mais do que o vigente); são modificados 113 artigos da atual Constituição; mantidos 11; e eliminados 13.
Não se convocou uma Assembleia Constituinte por respeito à cláusula que assegura à Assembleia Nacional função constituinte.
Inovações
A nova proposta constitucional reafirma o caráter socialista dos sistemas político, econômico e social de Cuba. É preservado o papel do Partido Comunista como monitor da sociedade e do Estado, destacando-se seu caráter democrático e a importância de vínculo com o povo.
Ressalta-se que o Partido não está acima da Constituição e, como ente político, é obrigado a respeitá-la e defendê-la. E em sua atuação não deve substituir os órgãos estatais e administrativos, cujas atribuições são definidas pela Constituição e pelas leis do país.
O texto ressalta o reconhecimento de Cuba como Estado Socialista de Direito, de modo a reforçar o império da lei e a supremacia da Constituição.
Esse conceito de Estado de Direito se choca com a tradição socialista, que o considerava liberal e capitalista, e na qual somente cabia uma visão classista do Estado e do Direito.
Quem deu o primeiro passo nesta nova direção foi o Vietnam, na reforma constitucional de 2013, quando incorporou o conceito de “Estado de Direito Socialista”.
No econômico se mantém, como princípio, a propriedade socialista de todo o povo sobre os meios fundamentais de produção, bem como a direção planificada da economia, mas sem ignorar o papel do mercado. Não se trata de uma economia socialista de mercado, mas de submeter o mercado a um sistema de planificação flexível.
Reconhece-se a propriedade privada, que a Constituição não cria, já que nunca deixou de existir em Cuba. Admite-se o trabalho por conta própria (contapropismo) e o empreendedorismo individual, com direito de contratação de mão de obra.
Porém, proíbe-se a concentração de propriedades em mãos de pessoas ou corporações não estatais, com o objetivo de preservar “os limites compatíveis com os valores socialistas de equidade e justiça social”. Valoriza-se a propriedade cooperativa.
Novidade é como se estrutura a propriedade mista, até agora vinculada exclusivamente ao investimento estrangeiro e relacionada sempre com a propriedade estatal. Entende-se agora como mista a integração de duas ou mais formas de propriedades, incluídas a privada e a cooperativa, não apenas a estatal.
No entanto, a empresa estatal é considerada a principal protagonista da economia e se reconhece a autonomia de seu funcionamento.Quanto à cidadania, reconhece-se o princípio da cidadania efetiva. Um cubano pode adquirir outra cidadania sem prejuízo da original.
O novo texto constitucional reforça a defesa dos direitos humanos reconhecidos em tratados internacionais dos quais Cuba é signatária. Ressalta-se a importância de proteção do meio ambiente e de combate aos efeitos das mudanças climáticas.
Questões de gênero
Adota-se uma concepção de direitos humanos na qual se reconhece a sua indivisibilidade, irrenunciabilidade e interdependência, em correspondência com o princípio de progressividade, e sem discriminação. Amplia-se o direito de igualdade, e se proíbe toda discriminação por
“razões de sexo, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, origem étnica, cor da pele, crença religiosa, deficiência física ou mental, origem nacional ou qualquer outra lesiva à condição humana.”
Se oferecem garantias às liberdades de pensamento, consciência, expressão e convicção religiosa.
Abandona-se a atual concepção de matrimônio como relação entre um homem e uma mulher, e se introduz o conceito de relação “entre duas pessoas”. Diante desta proposta, a sociedade cubana se divide. Há quem prefira manter o atual conceito de matrimônio, relação entre um homem e uma mulher; os que apoiam a nova redação ou o novo conceito de relação “entre duas pessoas”; quem aceite o reconhecimento civil dos casais de fato, mas não o matrimônio; e outros que estão de acordo mas, em se tratando de filhos, limitam o direito à adoção; e por último, alguns advogam o conceito de matrimônio como a união “de duas ou mais pessoas”.
Amplo leque é oferecido quanto se trata de direitos trabalhistas, já que o Estado deixou de ser o único empregador, e hoje há variadas formas não estatais de empregabilidade.
Educação e saúde são mantidas sob responsabilidade do Estado e com caráter universal e gratuito. Abre-se, entretanto, a brecha, em caráter excepcional, para que determinados serviços de saúde não imprescindíveis e parte do ensino de pós-graduação, possam ser remunerados.
O Estado admite que alguns direitos econômicos e sociais, por ora, não há como assegurá-los, e incluí-los seria tornar a Constituição uma obra de ficção. Ficam, porém, regulados com projeção de progressividade, decisão que gera certa inconformidade entre a população, como os direitos à moradia digna, à alimentação e à água.
Se introduz a tutela judicial diante de violação de direitos constitucionais por parte de órgãos e funcionários do Estado, inclusive mediante indenização aos atingidos.
Parlamentarismo
Na estrutura do Estado são introduzidas importantes mudanças. Criam-se os cargos de Presidente da República e primeiro-ministro. Hoje, o Chefe de Estado de Cuba é o Presidente do Conselho de Estado escolhido pela Assembleia Nacional, que também acumula a função de Chefe de Governo.
De acordo com o projeto constitucional, o Presidente teria que ser um deputado eleito pela Assembleia Nacional, desde que tenha a idade mínima de 35 anos e, máxima, de 60, para seu primeiro mandato. O mandato seria de 5 anos e possibilidade de uma única reeleição.
O Presidente não cumprirá apenas funções cerimoniais e de representação. Ele é quem proporá à Assembleia Nacional o nome do primeiro-ministro, e este deverá lhe prestar contas de sua gestão, bem como será o presidente do Conselho de Ministros.
A comissão preparatória considera fundamental estabelecer limites de tempo para cargos importantes do Estado, na linha do que indicaram os últimos congressos do Partido, ainda mais porque, com o avançar do tempo, já não se justifica a legitimidade histórica dos que combateram em Sierra Maestra.
A Assembleia Nacional do Poder Popular mantém seu caráter de órgão supremo, único com poder constituinte e legislativo, encarregada de preencher os cargos mais importantes do Estado, à qual prestarão contas os órgãos e organismos do Estado. O presidente, vice-presidente e secretário do Parlamento ocuparão as mesmas funções no Conselho de Estado.
E é o Parlamento, e não o poder judiciário, que vela pela aplicação da Constituição, o que é motivo de polêmica nos debates em torno do projeto constitucional, mesmo considerando que este estabelece maior independência funcional ao sistema judiciário.
Nas províncias (equivalentes aos estados da federação brasileira), se suprimem as assembleias do Poder Popular e se constitui um governo formado por um governador e um Conselho Provincial, presidido pelo governador e integrado pelos presidentes das assembleias municipais e todos que exercem funções de direção administrativa nos municípios. Discute-se se o governador deve ser eleito ou designado.
Cria-se o Conselho Eleitoral Nacional, encarregado de organizar, dirigir e supervisionar as eleições e outros processos de consulta popular.
Este projeto está sendo debatido em centros de trabalho, escolas, unidades militares e bairros. “Podemos afirmar que estamos perante um exercício único de democracia real e efetiva, e de um processo constituinte igualmente paradigmático com o povo como verdadeiro protagonista”, declarou Homero Acosta, secretário do Conselho de Estado.
Terminada a consulta popular em 15 de novembro, a comissão redatora avaliará todas as propostas. Em seguida, apresentará um novo projeto à Assembleia Nacional, da qual resultará a nova Constituição da República de Cuba. Então, será submetida a plebiscito por votação direta e secreta de todos os eleitores cubanos, de modo a adquirir plena legitimidade democrática.
Frei Betto é escritor, autor de “A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Rocco), entre outros livros.