No mundo atual, a escravidão ainda é uma chaga tão pesada e cruel que, no seu calendário, a ONU consagra anualmente o 23 de agosto como “Dia internacional da lembrança do tráfico de escravos e de sua abolição”.
A própria linguagem é ambígua. A ONU fala de “lembrança do tráfico de escravos” como se, hoje, esse pesadelo fosse apenas uma lembrança má. No entanto, todo mundo sabe que, a cada dia, desse ano de 2018, em alguns países da África, crianças são sequestradas de suas aldeias para serem escravas.
No Oriente Médio, meninos de menos de dez anos são “educados” a entrar nas guerras. Nas fronteiras de alguns países, ainda se veem caminhões apinhados de crianças e adolescentes levados para o tráfico de pessoas humanas. Em países considerados “do primeiro mundo”, esse tráfico hediondo se faz clandestinamente, mas, às vezes, de forma igualmente cruel e violenta.
A própria ONU calcula que, atualmente, ainda existam mais de 800 mil pessoas sendo submetidas a regimes de escravidão. Lavradores continuam a trabalhar como escravos em fazendas que são verdadeiros campos de concentração. Mulheres são obrigadas a se prostituir no mercado de sexo. Crianças são roubadas de suas casas até para servir como doadoras de órgãos, ou para outros fins de escravidão. Isso ocorre em todos os continentes. Infelizmente, o Brasil é ponto de partida e de chegada desse perverso tráfico humano. Esse problema é tão grave que, em 2014, a conferência dos bispos católicos do Brasil (CNBB) tomou-o como tema da Campanha da Fraternidade.
De fato, organismos de várias Igrejas cristãs se propuseram a “identificar as práticas de tráfico humano em suas várias formas e denunciá-lo como violação da dignidade e da liberdade humana, mobilizando cristãos e a sociedade brasileira para erradicar esse mal, com vista ao resgate da vida dos filhos e filhas de Deus” (Cf. Texto-base da CF 2014, p. 8).
No Brasil, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), organismo ligado à CNBB, mantém permanentemente uma comissão que trabalha para denunciar e apoiar na libertação de escravos/as no campo. Em 2017, em todo o Brasil, o Ministério do Trabalho atuou 131 empresas que mantinham pessoas em regime análogo à escravidão. No campo, a agricultura, a pecuária e a produção florestal são os setores nos quais mais se encontraram “fazendas de escravos”. Nas cidades, mesmo em capitais como São Paulo e Belo Horizonte, a construção civil e a indústria têxtil são os setores nos quais se encontram mais casos de escravidão.
Empresas conhecidas mantém trabalhadores em situação insalubre, sem contrato de trabalho e pagando apenas duas refeições por dia. Eles são obrigados a morar no próprio emprego, em barracões infectos e inseguros. Alguns desses trabalhadores vêm da fome no sertão da Bahia. Esses ainda preferem a escravidão na cidade do que voltar à colheita da palma em Acari, BA, para fazer o sisal. Lá, as máquinas de prensa do sisal são tão primitivas e precárias que, diariamente, trabalhadores/as perdem a mão e mesmo o braço na moenda. Isso para ganhar 10 reais por dia e sem nenhuma proteção trabalhista.
Para piorar essa situação, a portaria 1129 do atual Ministério do Trabalho propõe que se considere trabalho escravo somente aquele que for praticado sob vigilância de armas e com restrição de liberdade. A situação degradante ou mesmo perigosa das condições de trabalho e as irregularidades trabalhistas, como não pagar em dinheiro e sim em comida, não mais configurariam situação análoga à escravidão. Os donos de fazendas rurais e empresas urbanas que mantêm escravos adultos e adolescentes agradecem a esse governo que eles mesmos impuseram ao país.
É preciso ficar claro: a exploração injusta do outro a serviço do lucro não é um abuso do sistema econômico. É a própria lógica do Capitalismo. Se se considera legal que cinco brasileiros detenham uma riqueza equivalente à metade da população brasileira, isso não ocorre por milagre ou por acaso. É fruto da exploração do trabalho e da fragilidade das pessoas vítimas dessa realidade terrível. Atualmente, embora nem sempre compreendido, o papa Francisco tem advertido contra a cultura do individualismo e da indiferença em relação aos outros.
Em julho de 2013, ao visitar Lampedusa, a ilha italiana onde tentam chegar milhares de migrantes africanos clandestinos, o papa declarou:
“Peçamos a Deus a graça de chorar pela crueldade que há no mundo e em nós, incluindo aqueles que tomam decisões socioeconômicas que abrem a estrada a dramas como esse”.
As Igrejas cristãs têm como missão testemunhar o projeto divino de paz e justiça no mundo para vencer todas as estruturas iníquas existentes na sociedade. Mais do que em tutelar a sociedade e querer impor a todos as leis e regras que as Igrejas criam para os seus fieis, os cristãos são chamados a testemunhar a verdade do que São Paulo escreveu: “Foi para que sejamos livres que o Cristo nos libertou” (Gl 5, 1).
Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e biblista, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Tem 55 livros publicados, dos quais o mais recente é “Conversa com o evangelho de Marcos”. Belo Horizonte, Ed. Senso, 2018.