Com ela, a majestosa e bela senhora do Sena, ardeu nosso coração também. Seja por fé, seja por estética, doeu muito em toda pessoa que se entende humana ver as chamas, indomáveis, devorando a imponente e majestosa catedral de Notre Dame de Paris, sob o combate competente e constante dos bombeiros.
É importante não deixar passar as lições e ensinamentos que ficam do fogo. E o primeiro é o valor imenso da história. Ali em Notre Dame queimavam diante dos olhos atônitos do mundo inteiro séculos de história. Como disse o presidente Emmanuel Macron, em belo discurso imediatamente posterior à tragédia: “Vamos reconstruir Notre Dame. Nossa história merece.” As velhas pedras que os turistas vão ver muitas vezes sem alcançar todo o seu significado importam. E muito. São nossa história, testemunhos imóveis e artísticos daquilo que uma civilização é capaz de fazer e construir.
Fica igualmente a certeza de que a beleza salva. Salva da mediocridade, da falta de horizonte, da obscuridade. Salva da tentação de achar que a vida é apenas o que os sentidos alcançam e a razão circunscreve. Salva da depressão de afundar na tristeza de que tudo acaba, perece e, portanto, nada vale a pena, pois a alma – ao contrário do que diz o poeta – é pequena.
No entanto, a lição mais luminosa do incêndio que vitimou a catedral está em imagens que passaram pelas redes sociais e pelos meios de comunicação. A primeira é de um grupo de jovens sérios e serenos, ajoelhados, rezando o terço e cantando uma versão da Ave Maria. Bela, cheia de sentido, a oração daqueles jovens falava por si só. A catedral ardia e isso era doloroso, mas Maria, em cuja honra Notre Dame foi construída, estava viva nos corações e na fé de todos eles.
A segunda foi de uma mulher de uns cinquenta anos que chorava desconsoladamente. Entrevistada pelos jornalistas, ela dizia que não sabia por que chorava. Não era religiosa, não tinha fé. Era ateia, mas ver Notre Dame sob as chamas lhe partia o coração.
Em ambas as imagens vejo o retrato não só da França hoje, mas de um mundo que continua buscando o sentido, segue sedento de absoluto, mas às vezes não consegue mais encontrar seu rumo.
A França é considerada a filha mais velha da Igreja. Foi importantíssima na história do Catolicismo, religiosa, artística e intelectualmente. Dali saíram grandes livros de teologia, fantásticas obras de arte, estupendas realizações culturais e religiosas. Hoje, vemos uma França laicista, que parece perder a cada dia sua cultura católica e vê crescer em seu seio a secularização por um lado e outras religiões, sobretudo a islâmica, por outro.
Digo parece propositalmente. Os jovens rezando e cantando ajoelhados diante da catedral em chamas me faz duvidar. A mulher ateia chorando também. Pelo contrário, me falam de um povo que não pode mais voltar a uma pré-modernidade perdida, mas busca febrilmente a transcendência que deixou escapar há muito tempo e da qual ainda não fez uma nova síntese. Um povo que continua guardando as festas religiosas talvez mais do que qualquer outro no mundo ocidental: Páscoa, Pentecostes, Assunção. As raízes cristãs não desapareceram e emergiram do fogo sob a forma de lágrimas desoladas ou de oração confiante.
Desde que o incêndio aconteceu, lembrei-me incessantemente da homilia que João Paulo II fez em sua visita a Paris, em 1980. Naquela ocasião, o Papa dirigiu-se à França secularizada e lançou uma pergunta inquietante: “França, filha mais velha da Igreja, tens sido fiel às promessas do teu Batismo?” Como os catecúmenos, no momento de receber o sacramento de iniciação que os insere na Igreja como filhos, confessam crer no Pai, no Filho e no Espírito Santo, a França era interrogada e instigada a fazer um exame de consciência.
Quase quarenta anos depois, o fogo lambeu as velhas e belas pedras da catedral de Notre Dame. E a tristeza de todos, crentes ou não crentes, católicos, muçulmanos, judeus ou de qualquer outra religião dá testemunho de que esse fogo não foi somente destruidor. Foi também purificador.
Não só a França é chamada a prestar contas das promessas do seu Batismo, ou seja, da firmeza e da solidez de sua fé e seu compromisso com o amor, a beleza, a justiça. Todos nós, que fomos tocados pelo que aconteceu em Paris, somos interpelados por esse fogo.
A mim, católica que conhece Notre Dame, havendo inclusive já assistido várias missas celebradas em seu interior, fica a convicção de que não se pode descuidar a memória, a beleza, os traços deixados pelo Absoluto na história contingente e tão desfigurada dos seres humanos. Notre Dame desfigurada e sempre bela continua nos convidando a não desistir de buscar e não perder a capacidade de nos deslumbrarmos e extasiarmos, sempre, com a Transcendência que mora em nós e ao redor de nós. É ela que, enfim, nos faz humanos.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.