Reprodução Carta Capital
Mãe Bernadete foi assassinada. Uma mãe de santo, uma líder espiritual, uma mãe, uma avó, uma mulher negra. O sangue que em vida lutava por direitos de sua comunidade, que em vida buscava justiça para o assassinato de seu filho Binho do Quilombo, esse sangue, enraizado em suas origens quilombolas e ligado à tradição do terreiro, no dia 17 de agosto de 2023, foi derramado cruelmente em meio a 22 disparos, na presença de seus netos.
Novamente, o sangue negro flui entre os territórios em disputa em nosso país. A proteção estatal continua falhando, especialmente quando se trata dos corpos das mulheres negras.
Com o aumento dos discursos carregados de ódio e do que chamamos de fundamentalismo religioso, os terreiros têm sido alvo de destruição crescente em nosso país, assim como os espaços de culto das comunidades indígenas, tudo isso impulsionado por correntes fundamentalistas presentes em partes significativas da igreja evangélica brasileira e setores católicos. O fundamentalismo religioso se pauta na chamada teologia do domínio, que surge nos anos 1970, nos Estados Unidos e que busca a reconstrução da teocracia, oferecendo uma cosmovisão cristã para a obtenção e manutenção do poder de evangélicos/as em esferas públicas. Está muito vinculado à ideia de “guerra espiritual”, luta contra um inimigo que pode atuar em diversas áreas da vida e que deve ser aniquilado.
Não podemos classificar esses incidentes como simples ‘intolerância religiosa’, pois vão além disso; não se trata apenas da religião em si, mas também da questão racial
Portanto, devemos chamar os fenômenos pelo seu verdadeiro nome, ou seja, “racismo religioso”. Esse termo pode ser entendido conforme proposto na cartilha dos Terreiros em Luta: racismo religioso é “um conjunto de práticas violentas que manifestam discriminação e ódio em relação às religiões de origem africana e seus seguidores, bem como em relação aos territórios sagrados, tradições e culturas afro-brasileiras”.
Nas periferias urbanas, o racismo religioso adquire novos matizes por meio de uma ligação inesperada entre o tráfico de drogas e a fé. A igreja trouxe transformações para muitos traficantes, que, ao se converterem, mesmo que não abandonem o tráfico imediatamente, passam a vislumbrar um plano de vida e estabilidade financeira em médio e longo prazo, na esperança de deixar o crime no futuro. No entanto, a curto prazo, conforme é característico das interpretações fundamentalistas, eles se veem na missão de confrontar o “inimigo”, o que muitas vezes se traduz em perseguição a outras crenças. As violências variam entre formas simbólicas e físicas, desde pichações cobrindo imagens do candomblé, anteriormente presentes nas paredes das favelas, até o medo induzido nas pessoas que vestem trajes ligados às suas religiões. Casas de reza indígenas são incendiadas, e terreiros de umbanda e candomblé são destruídos ou proibidos de praticar seus ritos. As ameaças de morte e os ataques físicos também são frequentes contra fiéis e líderes religiosos.
É importante pensarmos que nenhum discurso é apenas um discurso, as palavras instigam à ação. Essa violência discursiva se traduz em atos como o da Mãe Bernadete, da Mãe Gilda, de Kailane Campos e tanto. De acordo com a Iyá Imim Efun Lade, mulher, negra e sacerdotisa do Candomblé: “a partir do momento em que o negro começa a fazer o exercício da sua religiosidade, aquilo é demonizado, e essa demonização cresce ao longo da História, simplesmente por ser uma religião preta. Simplesmente por representar a ancestralidade do povo preto”.
Como pontua a pesquisadora de Católicas pelo Direito de Decidir. Letícia Rocha: “o racismo religioso é uma ferida que sangra no seio de nossa sociedade brasileira, desde o período colonial.” Essa violência brutal do derramamento de sangue das nossas mães e pais de santo pretos deve acabar, não podemos mais tolerar essas ameaças contra povos de terreiro, e precisamos de políticas públicas que de fato garanta a liberdade religiosa, direito de culto e a proteção das casas de reza, quilombos e terreiros.
A memória, o sangue e a luta de Mãe Bernadete e de todas as vítimas desse racismo religioso jamais serão apagados. É essencial que nos unamos, sejamos religiosos ou não, na luta contra o fundamentalismo religioso e o racismo. Juntos e juntas, e com muita luta, podemos construir caminhos rumo a uma sociedade que atrocidades como essas jamais aconteçam…
Angelica Tostes
Teóloga, mestra em Ciências da Religião, professora, pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e coordenadora de cursos do CESEEP.