Misericórdia é uma palavra que tem de ser resgatada do mau
uso. Comumente as pessoas compreendem misericórdia como um
sentimento de piedade, jogado como esmola para quem não tem mais
outro remédio na vida. Compreendida assim, ninguém quer ser o
coitadinho que precisa da compaixão alheia para viver. No entanto, nas
antigas tradições espirituais e na compreensão bíblica, misericórdia é
mais do que um sentimento. No século IV, Santo Agostinho explicava
que o termo latino “misericordia” vem de “miser cor dare” que significa
“dar o coração a quem precisa”. Isso significa empenhar-se em cuidar do
outro como compromisso afetivo e princípio de vida. Portanto, é uma
atitude permanente e que estrutura o modo de ser e de viver da pessoa.
Implica a solidariedade, mas esta vivida e praticada com o coração. Na
cultura bíblica, dizer que uma coisa é feita com coração não significa
apenas “com sentimento” ou “com afeição”, mas principalmente com o
que hoje se chama de “inteligência espiritual”, isso é, com totalidade ou
Infelizmente na nossa sociedade atual, desde crianças somos
formados para ser individualistas e indiferentes ao sofrimento do outro.
Mesmo entre povos, culturalmente abertos ao acolhimento do outro,
espalha-se uma cultura de violência que parece contaminar toda a vida
pessoal e coletiva. Vivemos em uma sociedade carente de valores que a
mobilizem positivamente e de um projeto de vida pelo qual valha a pena
lutar e viver. Isso torna o nosso mundo doente.
divindade feminina, concebida como um útero de mãe. Deus era visto
como Mãe sempre grávida de um universo novo. Como em hebraico, o
termo útero é rehém, a deusa se chamava: Rahamin, a divindade do amor
materno. Com o decorrer do tempo, o povo de Israel compreendeu que
não se tratava de uma divindade à parte, mas de uma forma como Deus se
manifesta. E A Misericórdia tornou-se um nome divino. No meio de uma
cultura antiga, na qual a dignidade da mulher estava em gerar e ser mãe, a
misericórdia divina se manifestava em tornar fecundas as mulheres
estéreis. E várias das matriarcas da Bíblia, como Sara, Rebeca, Ana e
outras eram estéreis. Deus as tornou capazes de ser mães para ser felizes
e protagonistas de uma nova história. Era um modo de afirmar algo que
até hoje é para nós importante: Deus abre o útero de nossas esterilidades e
faz com que tudo aquilo que em nossas vidas parece fechado se torne
fecundo e dê início a uma vida nova. A misericórdia divina desmente os
Nos tempos antigos do povo da Bíblia, a Misericórdia era uma
prognósticos pessimistas do mundo e leva as pessoas que se sentem
impotentes e incapazes a serem portadoras de uma vida nova.
pessoa de Jesus. Pela doação de sua vida, o Cristo ressuscitado
reconciliou povos inimigos e abriu as promessas divinas feitas a Israel
para todas as nações, raças e culturas do mundo. Portanto, a misericórdia
não é apenas um sentimento pessoal e sim um projeto social e político de
mundo reconciliado e em caminho.
curar doentes e testemunhar aos oprimidos que o reinado divino se
manifesta nesse mundo. Traz a todos justiça e libertação. Também nos
evangelhos, misericórdia é um projeto de vida nova que brota da secura,
onde parece que nada mais brotará. Na época de Natal, inspiradas em um
texto do profeta Isaías, as comunidades eclesiais cantam: “Da cepa (o
ramo seco) brotou a rama, da rama brotou a flor, da flor nasceu Maria e
de Maria, o salvador”. Em cada Quaresma, os cristãos celebram a
renovação da misericórdia divina em uma nova Páscoa.
grandes teólogos latino-americanos, escreveu um livro no qual propõe a
misericórdia não mais como atitude apenas ocasional. “O Princípio
Misericórdia” é toda a vida organizada a partir do critério da
solidariedade, vivida com delicadeza. Diversos estudiosos pensam que o
remédio mais eficaz para nossa sociedade doente é o carinho humano
manifestado nas relações. Deus quer que sejamos misericordiosos com os
outros, mesmo que eles não sejam justos nem bonzinhos. Afinal, Deus
nos trata com misericórdia e pede que o sigamos nesse caminho. Jesus
disse: “Quero a misericórdia e não o sacrifício” (Mt 9, 9).
Paulo escreveu que a misericórdia divina se manifestou na
Nos evangelhos, Jesus manifesta essa misericórdia divina ao
Na América Latina dos anos 80, o padre Jon Sobrino, um dos
grandes teólogos latino-americanos, escreveu um livro no qual propõe a
misericórdia não mais como atitude apenas ocasional. “O Princípio
Misericórdia” é toda a vida organizada a partir do critério da
solidariedade, vivida com delicadeza. Diversos estudiosos pensam que o
remédio mais eficaz para nossa sociedade doente é o carinho humano
manifestado nas relações. Deus quer que sejamos misericordiosos com os
outros, mesmo que eles não sejam justos nem bonzinhos. Afinal, Deus
nos trata com misericórdia e pede que o sigamos nesse caminho. Jesus
disse: “Quero a misericórdia e não o sacrifício” (Mt 9, 9).
Marcelo Barros é monge beneditino