À sombra do pequizeiro e à beira do Rio Araguaia jaz o corpo de um profeta: o que era pó ao pó retornou.
Um ano se passou sem a presença física dele entre nós (Páscoa em 07/08/20).
Apenas as lembranças, a memória de uma vida dedicada às suas causas. As mesmas causas de Jesus de Nazaré.
Um homem diferente, especial, único. Na sua pessoa é exemplificado aquilo que se dizia na minha terra natal: “sua mãe o trouxe ao mundo e jogou a receita fora.”
Assim era Pedro, nosso poeta, místico e profeta do Araguaia, que nos deixou um legado inestimável e ao mesmo tempo difícil de ser vivenciado.
(Texto completo e foto – Chico Machado)
O legado de um profeta
(Chico Machado)
Primeiro dia da semana. Domingo, dia dos pais. Feliz dia dos pais! Feliz dia das mães que, na ausência deles, são mães e pais ao mesmo tempo! Dia também da páscoa do profeta do Araguaia. Um ano se passou sem a presença física dele entre nós. Apenas as lembranças, a memória de uma vida dedicada às suas causas. As mesmas causas de Jesus de Nazaré. Um homem diferente, especial, único. Na sua pessoa é exemplificado aquilo que se dizia na minha terra natal: “sua mãe o trouxe ao mundo e jogou a receita fora.” Assim era Pedro, nosso poeta, místico e profeta do Araguaia, que nos deixou um legado inestimável e ao mesmo tempo difícil de ser vivenciado.
Meu domingo começou muito cedo. Guardadas as devidas proporções, fiz nesta madrugada, a mesma experiência da discípula fiel, Maria Madalena (Jo 20,1). Fui ver o local onde colocaram o corpo do meu Senhor. Rezei na sua “presença”, fazendo memória de toda a minha história de vida, a partir do momento que conheci aquele homem franzino, sendo um agente de pastoral, na igreja que ele idealizou e fazia acontecer com muito afinco e fidelidade aos anseios de Jesus. Situação esta que mudou radicalmente a minha história de vida de jovem sacerdote, chegando à região do Araguaia cheio de sonhos e expectativas, de estar ao lado daquele que era a nossa referência de bispo engajado na Igreja da libertação.
Pedro, um homem de Deus! Um ser humano cheio de humanidade. Sua sensibilidade para com os mais pobres, era algo que chamava a nossa atenção. Um pai para os pobres. Caminhava com eles e era um com eles. Me lembro de uma das vezes que percorremos juntos as estradas do sertão. Estávamos fazendo visitas às pessoas mais distantes do sertão. Tudo isso a pé. Vistamos várias famílias naquela ocasião. Numa das casas por onde passamos, era o horário do almoço e a dona da casa estava preocupada, pois não tinha pratos mais sofisticados. Pedro percebendo a preocupação daquela pobre mulher, foi até a prateleira, de panelas brilhantes de areadas, e pegou um dos pratos esmaltados que ali se encontrava. Depois de comer, lavou o seu prato, fazendo valer a lei da prelazia: “comeu, lavou a vazia.”
Pedro era também como um pai para todos nós agentes de pastoral da prelazia. Estava junto sempre na nossa caminhada, onde quer que ela acontecesse. Nos momentos de maior dificuldade das equipes de pastoral, no enfrentamento da realidade, lá se fazia ele presente. Me lembro dele presente em nossa casa, num dos momentos mais difíceis que estávamos passando. No ano de 1992, a igreja (prédio) amanheceu toda pichada com frases ofensivas a Pedro e a equipe de pastoral, pois havíamos nos colocado contrários a re-invasão do território de Marãiwatsédé, incentivada pelos políticos locais e fazendeiros da região. Momentos muita tensão e Pedro ali conosco, devolvendo-nos a esperança com a frase que sempre repetia: “se as dificuldades são grandes, a esperança é ainda maior.”
Pedro, um homem de Deus! Um homem de Igreja. Amava a Igreja inspirada nas pegadas de Jesus de Nazaré. Avesso a todas as formas de clericalismo e patriarcalismo, seja no jeito de se vestir seja nos títulos eclesiásticos, ou na forma triunfal de celebrar ou se apresentar como membro da Igreja. O povo simples o amava profundamente, e o chamava de padre Pedro, ou simplesmente Pedro. Lembro-me do jornalista que insistia em chama-lo de dom Pedro. Ele aproveitou para perguntar ao mesmo: dom Pedro I ou II? Pedro está vivo, presente em nossa caminhada! Seu legado nos inspira a continuar na luta. Seu jeito simples de ser, nos motiva a continuar como igreja povo de Deus, martirial e profética, na procura do Reino.
No atual contexto de pandemia, em que o clima de morte nos rodeia, seja pelas vidas ceifadas, ou mesmo pelas políticas de morte engendradas pelos anjos da morte de plantão, Pedro ressurge como a nossa grande esperança, de uma igreja que devemos ser, encarnada na realidade dos pobres, defensora das causas dos menos favorecidos. No dia em que Jesus se define como, “Eu sou o pão que desceu do céu” (Jo 6,41), Pedro é para nós, esta luz que aponta para este mesmo Jesus, a quem, fez da sua vida um seguimento coerente como testemunha fiel do Ressuscitado. Um homem de profunda fé, que rezava na mesma cartilha do povo simples e humilde. Sua fé o fez resistente teimando em abandonar-se nas mãos do Pai, sendo também pai de muitos, aqueles e aquelas que, como ele fizeram de suas vidas as mesmas causas do Reino, a ponto de também dizer como ele: “Tenho fé de guerrilheiro e amor de Revolução. E entre evangelho e canção, sofro e digo o que quero.” (Pedro Casaldáliga)