O sistema atual que domina o mundo insiste em afirmar que não adianta sonhar. A realidade é cada vez mais dura e cruel. Se milhões de pessoas passam fome, insistem que isso é inevitável. Empresas mineradoras destroem o planeta apenas para garantir lucros fantásticos à pequena elite que as dirige. Chamam isso de progresso. Com razão, o papa Francisco denuncia: a maioria dos seres humanos é considerada descartável. No entanto, mesmo nessa realidade, povos tradicionais e comunidades resistem e lutam para alcançar o sonho de uma vida digna.
Povos como os Xavantes no Centro-oeste, os Yanomami no norte da Amazônia e os Tabajara no litoral da Paraíba levam muito a sério os sonhos. Uma das importantes funções dos mais velhos é sonhar. Esses sonhos são instrumentos de escuta do Espírito que conduz pessoas e comunidades para um projeto de vida e de justiça para todos.
No começo desse século, em Alagoas, um rapaz de menos de 30 anos que se preparava para jogar futebol em um time de Portugal recebeu de um ancião da família o aviso. Um sonhador mandava dizer: aquele jovem pertencia à antiga nação dos Tabajara. E sua função não seria apenas jogar futebol e sim reunir os parentes dispersos e ajudá-los a recuperar suas terras ancestrais e o modo de viver próprio do seu povo. O rapaz acolheu o chamado. Atualmente, embora continuem lutando pela titulação da terra e reconhecimento da sociedade, os Tabajara estão organizados em dezenas de aldeias no litoral sul da Paraíba.
Há mais de dez anos, Riccardo Petrella, pensador e sociólogo italiano, escreveu: “O direito de sonhar” (2004). Nesse livro, ele propunha “as opções econômicas e políticas possíveis para uma sociedade justa”. Denunciava a forma iníqua como, com a conivência dos meios de comunicação de massa e de muitos governos, a maior parte da humanidade se tornou prisioneira e refém dos bancos e dos banqueiros. Para mais de um bilhão de pessoas humanas, os grandes conglomerados financeiros internacionais agem como verdadeiros “ladrões de sonhos”.
Organizam o mundo de forma que impede a maioria das pessoas de viver dignamente. Mesmo em países ainda considerados ricos como Alemanha e França, jovens com mais de 30 anos não podem casar, porque não têm emprego fixo e não conseguem sustentar uma casa. A maioria da população deve aceitar passivamente manter-se nos limites arriscados da mera sobrevivência, para que uma pequena elite se torne cada vez mais rica. Uma pesquisa recente mostrou: Na Itália, de cada três jovens, um está desempregado e sem esperança de conseguir emprego. Enquanto isso, apenas dez pessoas possuem atualmente uma renda equivalente a três milhões de italianos. Essa é a mesma lógica que faz com que, conforme dados da ONU, o Brasil seja o terceiro país no mundo em desigualdade social. Apenas cinco brasileiros detêm uma renda equivalente à metade da população brasileira.
O direito de sonhar implica na decisão de organizar uma sociedade mais justa e igualitária. Para isso, são necessárias opções econômicas e políticas diferentes e novas. Isso tem como base uma confiança que vem do coração humano e está ligada à fé. Para muitos, se trata de fé na vida, confiança na bondade fundamental do ser humano e alegria de ver que existem sinais de uma nova consciência de paz e comunhão de toda a humanidade e entre os seres humanos e a natureza.
A Bíblia diz que isso é o projeto divino para o mundo. É o Espírito quem move a humanidade nessa direção. Transforma o futuro em caminho real de um mundo novo de justiça e paz. Assim, o direito de sonhar não é apenas projeção dos desejos inconscientes. É missão de todas as pessoas famintas e sedentas de justiça. Ao lutar pacificamente para realizar esse sonho coletivo de paz e justiça, não estamos sozinhos. Conosco está Alguém que se manifesta em todo ato de amor e nos dá a força de tornar real a utopia de uma vida verdadeiramente realizada e feliz.
Para sonhar e lutar por seu sonho, ninguém precisa ser Dom Quixote ou entoar a clássica canção da peça “O homem de la Mancha”, imortalizada no Brasil pela voz de Maria Bethânia: “Sonhar mais um sonho impossível; lutar, quando é fácil ceder; vencer o inimigo invencível, negar, quando a regra é vender...” Em Chiapas no México, há mais de 20 anos, as comunidades indígenas se rebelaram contra o Estado e proclamaram sua autonomia social e política. Os seus comandantes afirmavam: “Somos um exército de sonhadores. Por isso, somos invencíveis”.
Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e biblista, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Tem 55 livros publicados, dos quais o mais recente é “Conversa com o evangelho de Marcos”. Belo Horizonte, Ed. Senso, 2018.