Tomemos como ponto de partida duas notícias, praticamente simultâneas, ocorridas na grande metrópole do Rio de Janeiro. No dia 8 de fevereiro pp, ainda pela madrugada, um incêndio de proporções desastrosas devorou o dormitório do Centro de Treinamento do Clube de Regatas Flamengo. Em poucos minutos, as chamas puseram fim à vida de 10 garotos, ceifando-lhes o sonho de serem jogadores de futebol e, quem sabe, ajudar as respectivas famílias.
Três outros foram feridos e internados no hospital, num total de 13 vítimas. Algumas horas mais tarde, nas proximidades dos morros da Coroa e do Fallet, no bairro Santa Tereza, um confronto a tiros entre a Polícia Militar e um grupo de rapazes deixou um saldo macabro de 13 mortos, todo do lado dos “bandidos”, como festejaram não poucos internautas. Tanto num caso quanto no outro, 13 vidas foram ceifadas na flor da idade! Neste último caso, mais do que confronto, não seria exagero falar de execução.
No decorrer de todo o dia (e nos dias seguintes), a imprensa em geral e as próprias redes sociais, mantiveram-se com as câmeras, os holofotes, os microfones e os olhos fixos na tragédia do Flamengo, esquecendo quase por completo o resultado igualmente trágico do “tiroteio” – na expressão clássica dos policiais. Como se o espetáculo das labaredas e da fumaça do primeiro desastre impedissem de enxergar os rastros de sangue do segundo.
Cabe a pergunta: por que esse tratamento diferenciado por parte dos meios de comunicação? Por que tanto espaço por parte da televisão, do rádio, dos jornais e dos internautas para o incêndio e, ao mesmo tempo, um silêncio estranho e no mínimo suspeito em relação à chacina? Por que uns têm nome e sobrenome, rosto e talento, família e parentes, história e endereço fixo, ao passo que os outros parecem ter brotado do nada e do chão, terem assombrado como fantasmas, para em seguida sumiram sepultados no anonimato? Tratar-se-á, por acaso, de duas classes diversas de jovens, ou duas espécies distintas de pessoas humanas?
Convém ter presente que os dois grupos, na adolescência ou juventude, possuíam entusiasmo e energia, e pela frente um futuro de sonhos e realizações, projetos e esperanças!… A diferença é que, enquanto os sonhos de uns foram precocemente despedaçados e reduzidos a cinzas no ato mesmo do incêndio, os sonhos dos outros já haviam sido despedaçados, gota a gota, dia-a-dia, desde a infância mais remota.
Aliás, estes últimos são filhos de famílias dilaceradas, devastadas e fragmentadas há décadas, para não dizer há séculos. Para ambos os grupos de adolescentes e jovens, o brilho da vida se apagou antes do tempo, como as estrelas cadentes. Diferentemente das possibilidades abertas aos representes do primeiro grupo, porém, nunca ou raramente as mesmas oportunidades bateram à porta dos garotos do segundo.
Na busca individual ou familiar por horizontes alternativos, uns tiveram a sorte de serem descobertos pelo time de futebol que mais conquistou torcedores em todo o território nacional. Os outros, ao contrário, devido às condições de precariedade e vulnerabilidade em que cresceram, facilmente são recrutados pelas funestas armadilhas do crime organizado. Daí os becos tortuosos e sem saída do álcool, da droga e da perseguição por parte das forças públicas.
Vale recordar, ainda, que em ambos os casos estamos diante de crianças que possuem origens pobres, rebentos de famílias humildes. Ambos, em geral, conheceram o abandono ou, pura e simplesmente, a ausência do Estado. Têm berço e largada semelhante, mas, a um certo ponto da rota, para todos os seres humanos, os caminhos se bifurcam. Para uns, nasce e cresce um projeto esportivo, que alimenta a esperança e o sonho no amanhã. Para outros, cedo o sonho se converte em pesadelo. Os primeiros morreram vítimas de uma catástrofe (fatal ou criminosa que seja). Os segundos começam a morrer desde o nascimento, a conta-gotas.
Pouco a pouco, aos olhos das autoridades e da população indiferente, e sob o comando do estado paralelo, tornaram-se verdadeiros cadáveres ambulantes. Os disparos que por fim os abateram não passam de um ponto final num percurso pontilhado de adversidades.
Rio de Janeiro, 8 de fevereiro de 2019.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs