Para celebrar os 500 anos da Reforma, um marco na história do Cristianismo, reuniu-se em Belo Horizonte a Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião (Soter). O objetivo era discutir não apenas o evento que inaugurou o Protestantismo, como também a pluralidade religiosa que hoje é uma realidade sempre mais presente em todo e qualquer intento de pensar a fé com rigor e autenticidade.
Há cinco séculos, Martinho Lutero, monge agostiniano, entendeu que a Igreja necessitava de uma reforma. E, assim, iniciou um movimento cuja carta magna foram as 95 teses que pregou na porta da igreja do Castelo de Wittenberg. Tratava-se de um protesto contra diversos pontos da doutrina da Igreja Católica Romana.
O diálogo de Lutero com o Vaticano não evoluiu bem e houve realmente uma separação. Lutero recebeu apoio dos príncipes alemães. Roma endureceu e preparou a Contrarreforma. Nela tiveram destacado papel os jesuítas que no Concílio de Trento foram protagonistas na preparação do Catecismo Tridentino que especificava bem a identidade do Catolicismo Romano contra o Cristianismo Reformado.
Correu tempo, sangue, suor e lágrimas, enquanto os cristãos lutavam uns contra outros, cada lado clamando possuir a verdade e tratando de combater e/ou eliminar o erro e o engano do outro. As acusações mútuas variavam da idolatria à heresia. Todos perdiam e ninguém ganhava.
O Concílio Vaticano II proclamou oficialmente a necessidade imperiosa do ecumenismo, ou seja, de que todas as confissões cristãs se conscientizassem do fato de habitar a mesma casa, crer no mesmo Deus e buscar Seu Reino proclamando o mesmo Evangelho. Era preciso fazer passos efetivos em prol da unidade.
Hoje é possível e efetivo que católicos e protestantes de várias denominações se sentem juntos para dialogar em um congresso de três dias inteiros. Mais: não se defendem de acusações nem esgrimem diferenças. Fazem autocrítica, pedem perdão, buscam pontos de convergência e não de dissensão.
Juntos, olham mais longe e percebem o quanto receberam um do outro. Os católicos devem muito aos protestantes a devolução da Bíblia em suas mãos. Os protestantes, por sua vez, aprendem de seus irmãos católicos, entre outras coisas, o amor pelo precioso dom da unidade, que é preciso proteger e estimular de todo coração.
Olhando em volta, percebem quanto o movimento iniciado por Lutero deu frutos e gerou herdeiros. As religiões que hoje, em imensa diversidade, se tornam interlocutoras próximas do Cristianismo histórico, enriquecem o pensar teológico ao mesmo tempo que o desafiam.
Foi bonito ver no Congresso um eminente teólogo luterano fazendo um resgate histórico do luteranismo sem deixar de apontar suas lacunas e falhas: intolerância com outras tradições religiosas, rigidez e não aceitação de diferenças de pensamento, fechamento ao diálogo.
Ao mesmo tempo representantes de outras religiões sentiam-se à vontade para expor sua experiência de diálogo com o cristianismo católico ou reformado. Todos eram ouvidos com respeito e sentiam sua contribuição valorizada.
Não poderia faltar a marca sempre positiva e bela da pessoa do Papa Francisco, que com seu pontificado enche a Igreja e o mundo de esperança de tempos de abertura e diálogo. Sua presença em Lund, na Suécia, para uma oração ecumênica com pastores e autoridades do mundo protestante; suas atitudes ecumênicas e abertas ao longo de todo o seu pontificado permitem esperar avanços ainda maiores no caminho do ecumenismo.
A liberdade que o atual pontífice cultiva e exprime desde os tempos de Buenos Aires como arcebispo, reafirma-se e ganha força ainda maior como chefe da Igreja Católica. É conhecida sua proximidade com o judaísmo e o Islã em sua Argentina Natal. Em Roma tem dado prosseguimento a essa proximidade, estendendo-a igualmente a outras religiões não cristãs e não monoteístas.
Não é possível fazer teologia hoje sem um diálogo aberto, profundo e respeitoso com outras confissões cristãs e outras tradições religiosas. Por isso, o congresso anual da Soter, que celebrava os 500 anos da Reforma, terminou com uma nota de esperança. Indo além de todos os passos que já foram dados, por que não esperar, desejar e mesmo buscar gestos simbólicos que marquem com força a unidade que já não tem possibilidades de retrocesso?
Entre essas possibilidades inspiradas pelo Espírito estaria talvez um pedido para que se levantasse a excomunhão de Lutero, datada de 500 anos. E outros passos criativos e corajosos que se apresentem pelo caminho. Assim, a unidade será multicor e polivalente, mas será, sempre mais autêntica e verdadeiramente unidade. E a Igreja que quer e deseja isto será, como é desejo do Papa Francisco, “ecclesia semper reformanda”.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.