Quando se fala de direita, muitos pensam logo em Bolsonaro e seus seguidores, com um preocupante aumento de adeptos. Faltava na arena política brasileira esta ultradireita articulada, como a Frente Nacional na França ou o PVV de Geert Wilders na Holanda, ambos disputando um segundo lugar. Também descobrimos na internet páginas furibundas, “Brasil pela direita” ou “Movimento Intervencionista Institucional”, pedindo intervenção militar. No momento são pequenos grupos vociferantes. Porém, ao ignorá-los totalmente, poderíamos repetir o equívoco que Trotski denunciou na Alemanha, quando o Partido Comunista, enredado na luta contra a social-democracia (social-fascismo dizia), não percebeu o perigo nazista que surgia ainda frágil, para conquistar o poder em 1933. Entre nós, num momento de violenta crise institucional, com os três poderes enfraquecidos, podem fazer-se ouvir perigosamente vozes, no começo isoladas, com uma alternativa à la 64.
Frente às manifestações em Brasília, o fraco presidente Temer, escondido nas brumas do Planalto, pediu a presença do exército nas ruas, ainda que felizmente por pouco tempo. As explicações ficaram por conta do responsável, o General Sérgio Etchegoyen, Ministro-chefe do Gabinete de Segurança da Presidência. Em 2014, este, com sua família, protestara contra afirmações da Comissão Nacional da Verdade envolvendo, durante o período militar, a participação na repressão de seu pai, Leo Guedes Etchegoyen e seu tio, Cyro Guedes Etchegoyen, este último possível responsável pela “casa da morte” de Petrópolis. Seu avô, Alcides Etchegoyen, em 1942, substituiu Filinto Müller no aparelho repressivo do Estado Novo e, contrário à nacionalização do petróleo, com sua Cruzada Democrática, em 1952, venceu as eleições no Clube Militar, frente ao nacionalista Estillac Leal.
O general Sérgio Etchegoyen também negou que a ABIN (ex-SNI), baixo seu comando, tenha espionado o Ministro do STF, Edson Fachin, como denunciou a direitista Veja. Estes dados ficam apenas como um lembrete. Café Filho, num primeiro momento considerado de esquerda, não se cansava de repetir: “Lembrai-vos de 37”, o golpe do Estado Novo. Poderíamos parafrasear: “Lembrai-vos de 64”. Mas isso, pelo momento, são indícios incipientes, diante dos quais há que ficar em guarda.
Entretanto, mais importante, não podemos esquecer outra direita, esta forte, fiel aos interesses do grande capital. Pelo momento, por falta de alternativa, sustenta o cambaleante governo Temer, que tenta servir a seus interesses. Até quando?
Esta direita tem o mesmo programa pelo mundo afora. O ortodoxo economista Carlos Alberto Sardenberg, num significativo artigo, “Que falta nos faz Macron” (O Globo, 15/6/2017), resume à perfeição esse modelito: “(Macron) confirmou sua agenda definida como ‘radical de centro’: reformas da Previdência e da legislação trabalhista, maior rigor e restrição na concessão de seguro-desemprego, tornar o ambiente de negócios mais amigável para os empreendedores e privatizações”. Mais adiante, no que chama “revolução democrática” pergunta: “Onde estará nosso Macron?” Para ele,“o candidato deve ser conservador em matéria de economia – equilíbrio das contas públicas, redução do tamanho do Estado, simplificação e redução da carga tributária, além das reformas. Em resumo, livre mercado e globalização – um sistema no qual a competição e a eficiência valham mais que as relações de bastidores com os governantes e seus partidos”. Estes últimos, tiro a conclusão, não passariam de serviçais do poder econômico. Vale ler o que a própria direita explicita em seus textos, para não sermos acusados de simplificar seu programa. Uma leitura atenta de O Globo, a Folha, Estadão, Veja ou Época, sem falar na pandilha da GloboNews, nos dá indícios significativos. Voltarei adiante ao caso brasileiro.
Exemplar foi a vitória de Emmanuel Macron na França. Banqueiro, sócio do grupo Rothschild, ficou no ambíguo governo do Partido Socialista como Ministro da Economia; em 2014, encaminhou um projeto de lei, conhecida depois como Lei Macron, com a liberalização do código de trabalho. Saiu em agosto de 2016, criando logo seu grupo político En Marche; chegou à presidência francesa, com 66% dos votos, contra a candidata da Frente Nacional, Marine Le Pen. Social-liberal, para uns, social-democrata para outros. Ele, porém, não se considera nem de direita nem de esquerda. Esse “nem…nem”, faz lembrar Monsieur Jourdain de Molière, que dizia não desejar fazer nem prosa nem verso, ele que, sem querer, se comunicava numa prosa capenga. No caso de Macron, antes de tudo, temos uma direita a secas, a serviço do grande capital. Causa espécie, em artigos recentes, a aproximação com o Podemos espanhol. Nada tão diferente.
Analisando outros países, vemos o empresário Maurício Macri, presidente na Argentina, seguindo a mesma política, destruindo a Lei de Imprensa que tirou o poder concentrador na mídia do poderoso grupo Clarin, as Organizações Globo dali (os governos petistas não tiveram a mesma ousadia, ou força, de Cristina Kirchner). No Peru, mesmo perfil de Pedro Paulo Kuczynski, com passagem pelo Banco Mundial, que criou seu partido, Peruanos por el Kambio (assim, com k, pelas iniciais do chefe). No México, o PRI voltou ao poder com Enrique Peña Nieto, que abriu o petróleo para empresas estrangeiras, voltando atrás da política nacionalista de Lázaro Cárdenas dos anos 30. Na Itália, o tecnocrata Mario Monti, conselheiro da Goldman Sachs, foi primeiro-ministro de 2011 a 2013. A Goldman Sachs, como indicou recentemente Sílvio Caccia Bava, vem mantendo “ligações íntimas” com a elite política europeia. Esteve no epicentro da grande crise econômica de 2008, quando foi salva por forte ajuda financeira durante o governo Bush; descobrimos que esteve presente também na crise grega de 2011. Colocou Mário Draghi, seu presidente para a Europa, no Banco Central Europeu. Participa no governo Trump com vários de seus membros. Através desse Banco de investimento e grupo financeiro multinacional, podemos rastrear a presença do grande capital nessas e em outras relações com dirigentes políticos. Temos assim uma direita funcional aos poderosos interesses econômicos.
Mas felizmente, há sinais em outra direção. Ainda olhando para o cenário internacional, descobrimos o surgimento de novas alternativas. Na Espanha Podemos, com prefeituras de Madri e Barcelona, teve uma votação que encosta no velho PSOE socialista; a França Insubmissa, no primeiro turno para eleições parlamentares, conseguiu mais votos que o Partido Socialista, que despencou; o novo trabalhismo inglês, com Jeremy Corbin, supera o tempo ambíguo de Tony Blair e quer recuperar políticas sociais do pós-guerra, como a nacionalização da saúde, tirando da conservadora Theresa May a maioria folgada que tinha; no México, Lopez Obrador, do Movimento Regeneração Nacional, de acordo com pesquisas, poderá chegar ao poder e reverter a atual política petroleira antinacional. Mesmo nos Estados Unidos, a candidatura de Bernie Sanders, nas primárias democratas, trouxe um programa valente para enfrentar o poder econômico e diminuir as desigualdades, empolgando setores da juventude.
Voltando ao Brasil, encontramos as tão apregoadas “reformas”, que nada mais são do que retrocesso diante dos direitos adquiridos e conquistados para boa parte da população. O desenho é o mesmo. O governo Temer se mantêm tropegamente em pé, enquanto serve aos interesses do setor dominante. Mas cada vez é mais impotente para implementar as mudanças que lhe são requeridas. O PSDB, sempre no muro, no momento em que escrevo, vai ficando no governo com quatro ministérios, mas anuncia que, se desembarcar do poder, seguirá apoiando as chamadas reformas neoliberais. Porém o que também está em jogo, além dessas reformas, que caminham com pouco fôlego, é um possível cenário eleitoral de 2018. Por isso, a oposição pede diretas já.
O artigo de Sardenberg, citado acima, não deveria dizer que nos falta um Macron, mas sim que já o temos, embora capenga. Na verdade, para esse economista, faltaria um Macron mais poderoso. E pergunta em seu artigo: “Onde estará nosso Macron?”. Para terminar, sibilino, mas certamente já com a resposta na ponta da língua: “Conhecem alguém?”. Claro que já existe um forte candidato a ser um Macron tupiniquim. Chama-se João Agripino da Costa Doria Junior, ou simplesmente João Doria Júnior, com um perfil em muitos pontos semelhante ao francês. Filiou-se ao PSDB em 2001, mas agora se diz sem fidelidade partidária (afinal parece ter votado em Collor). Apresenta-se como um gestor (feitor?) sem vida política anterior, mas foi Secretário Municipal de Turismo de Mário Covas e presidente da Embratur com Sarney. Perfil de publicitário-empresário. Descendendo dos tradicionais Costa Doria, dono de grande patrimônio deixou, ao eleger-se prefeito, a direção do grupo Doria, com seis organizações de comunicação e marketing. Ali está a LIDE (Grupo de Líderes Empresariais). No momento, parece disputar com Alckmin a candidatura a presidente pelo PSDB. Não o conseguindo (Serra, silencioso corre pela beira, Aécio é carta fora do baralho), poderá formar seu próprio partido ou usar uma das várias legendas de aluguel. Como quem não quer nada, em entrevista à BBC Brasil, divulgada em 16 de junho, Doria indica que o próximo presidente do Brasil deveria ser “um inovador, um gestor”. Autorretrato?
Frente ao poder econômico, que se esconde por baixo da frágil vida política, o que vemos? Sempre com o caso da França como parâmetro, há uma grande desilusão, ou desinteresse pela política. Não esqueçamos que, no primeiro turno das eleições legislativas francesas, a abstenção foi de pouco mais de 51%, cifra recorde na Quinta República. Assim como, no Rio de Janeiro, tivemos alta abstenção, somada a votos em branco ou nulos, na eleição para a prefeitura. FHC, surpreendentemente, dia 15 de junho, mudando sua posição anterior, com competência de sociólogo e sempre bem informado, fala de “anomia” e de falta de legitimidade do governo Temer. E a este solicita um gesto de grandeza, para pedir antecipação das eleições gerais, bandeira até agora dos partidos de esquerda. E prevê: “ou o poder se erode de tal forma, que as ruas pedirão a ruptura da regra vigente exigindo antecipação do voto”. Nas entrelinhas, outro perigo: o pedido por grupos ultra, como indicamos no início, de uma ruptura institucional. O Globo, em editorial dia 17, exclama enigmático: “É de forte significado que FH e Lula, polos opostos em política partidária em mais de duas décadas, coincidam nesta tese das diretas. Mas antes de ser a coincidência uma virtude, ela reflete dificuldades que os dois vivem no momento”. Fica no ar a questão: que dificuldades são essas?
Nesse quadro, a Frente Brasil Popular apresenta um Plano Popular de Emergência, com “propostas para restabelecer a ordem constitucional democrática, defender a soberania nacional, enfrentar a crise econômica, reverter o desmonte do Estado e salvar as conquistas históricas do povo trabalhador”. A ele se unem a frente Povo sem Medo e um enorme número de organizações da sociedade civil, patriotas independentes e, claro, os partidos de esquerda, convocados a abrir-se em uma aliança progressista. Várias mobilizações estão previstas pela frente. Não há que perder o poder participativo e democrático das ruas, como prevê com certo temor o próprio FHC.
Atenção, não custa repetir: a fragilidade de Temer não significa a fragilidade da direita. Ela está disposta a abandonar este governo, procurando estar presente em outra configuração política. Pelo momento, os dirigentes da situação não se põem de acordo em quem sucederia Temer em eleição indireta. Numa reunião de Henrique Meirelles com empresários nacionais e estrangeiros, fica claro o que O Globo indica em titular: “Andamento das reformas preocupa mais investidores que destino de Temer”(6/6/17). Faltaria dizer que a permanência de Meirelles é mais importante, como aval de uma política que deveria continuar e de “reformas” a implementar.
O importante será enfrentar democraticamente a direita nas urnas, antecipadamente em “diretas já” – o que seria melhor – ou através do voto, em 2018. Afinal, ela tem sido vencida desde 2002 e teve de apelar a um golpe para voltar. Há que dizer não a qualquer tentativa de golpe, construindo uma Frente Ampla Nacional, Popular e Democrática, para além de partidarismos excludentes, recuperando um sentido de nação e de povo, com um projeto que deixe para trás uma direita neoliberal.
Nas sondagens eleitorais, Lula aparece à frente. Depois de terminar a faxina com Temer, Aécio, Cunha e companhia, está o perigo, numa decisão em gangorra, de tentar tirar os direitos políticos de Lula, apelando inclusive para sua prisão. Uma forte mobilização popular em contra poderá fazer pensar duas vezes os que manejam os mecanismos, nesta juridização da política em curso. Há que devolver o poder ao povo nas próximas eleições, tirado com o impeachment de Dilma, seja com Lula ou com outro candidato, num grande compromisso nacional. A direita pode ser derrotada mais uma vez e os sussurros golpistas, venham de onde vierem, têm de ser afastados por um povo mobilizado e ativo. Eis uma enorme tarefa que, brasileiros patriotas, temos todos pela frente.
Luiz Alberto Gomez de Souza – Formado em Ciências Jurídicas e Sociais, pós-graduado em Ciência Política, doutor em Sociologia. Autor de mais de cem artigos em revistas brasileiras e internacionais e colaborador e organizador de vários livros