A grande escritora, filósofa e cineasta estadunidense Susan Sontag sempre foi muito atenta, quase obcecada, pelo mistério da guerra e da violência protagonizados pela espécie humana. Sobre isso escreveu vários ensaios, fez trabalhos fotográficos e filmes em regiões como Sarajevo, tornando-se uma figura icônica de intelectual comprometida com os problemas de seu tempo.
Em seu livro “Sobre a dor dos outros” (Regarding the pain of others), de 2004, ela explora as raízes da guerra. E, a partir de um escrito de Virginia Woolf, reflete sobre a pergunta feita à escritora inglesa por um homem sobre a possibilidade de prevenir a guerra. Woolf responde com uma perturbadora afirmação: Os homens fazem a guerra. A maioria dos homens gosta da guerra, já que para eles há “alguma glória, alguma necessidade, alguma satisfação em lutar” que as mulheres, ou pelo menos a maioria delas não sente nem desfruta. Segundo Woolf – secundada em sua convicção por Sontag – a guerra é um jogo de homens. A máquina de matar tem um gênero, e é macho.
Escrevo isso tendo ainda frescos no coração e na mente os terríveis eventos da escola de Suzano, em São Paulo, quando dois jovens rapazes, ex alunos da instituição, entraram atirando para matar. Mataram cinco jovens estudantes, além de duas educadoras e o tio de um dos assassinos. Depois se mataram. Não havia um objetivo definido: nem vingança, nem roubo, nem intolerância religiosa. Não se tratava tampouco de uma guerra entre nações ou da invasão de um país por uma grande potência estrangeira. E neste sentido o evento difere daquele comentado por Virginia Woolf e refletido por Susan Sontag. Não há nada além da morte alheia e a própria. Apenas o gozo de atirar e atirar para matar. Matar e morrer, esse é o jogo.
A tragédia de Suzano tem antecedentes na história recente. Nos Estados Unidos, em Columbine (Colorado), em 1999, quando dois adolescentes assassinaram 13 pessoas, ou em Newton (Connecticut), onde um jovem matou 20 crianças e seis adultos numa escola infantil. No Brasil, cabe mencionar a tragédia de Realengo (Rio de Janeiro), em 2011: doze estudantes de uma escola em Realengo, bairro localizado na Zona Oeste, morreram depois que um homem abriu fogo. O agressor, um jovem de 24 anos, era um ex-aluno da escola e cometeu suicídio após o massacre.
Em todos os casos, o rastro deixado pelas armas é de sangue, dor e lágrimas inconsoláveis. As mães, os familiares, os amigos, enterram as vítimas perplexos diante da brutalidade de uma violência para a qual não se consegue encontrar explicações.
Se observarmos esses tristes eventos, vamos encontrar neles protagonistas e atores masculinos. Meninos. Não há meninas em nenhum dos casos. A violência deliberada tornada matança, gestada em um site da internet, onde os membros incentivam uns aos outros ao ódio e à violência, é coisa de homem, de menino. Meninos que se vestem de matadores inspirados em filmes ou séries americanas e descarregam suas armas sobre outros e sobre si mesmos, declarando que esse é o sentido de suas vidas.
Não se quer aqui afirmar que todos os homens são violentos e as mulheres, pacíficas. Isso não seria verdade. Porém, se afirma, sim, que o jogo, o ritual, as vestes, o instrumental da violência e da guerra predominam no imaginário masculino muito mais do que no feminino. A razão disso estaria na forma tradicional como meninos e meninas são educados. Desde muito cedo são dadas armas de brinquedo aos meninos, incentivados a brincadeiras brutas. E suas brigas são violentas e machucam, enquanto no campo das meninas as atividades são mais tranquilas, criativas e lúdicas.
Muito se tem questionado esse tipo de educação, que reduziria a mulher a um papel passivo na sociedade e empurraria o homem em direção à violência e à agressividade. Não se trata, pois, de fazer aqui o elogio deste tipo de dicotomia, em que mulher é princesa e homem, guerreiro. Mas sim de questionar se a formação das novas gerações não estaria sendo reduzida em suas potencialidades a um vazio desesperador, formando homens violentos que só vão encontrar motivação em jogos perigosos e vorazes. Ao mesmo tempo em que produz mulheres insatisfeitas e frustradas, que se realizarão no consumo e na futilidade.
Assim como frente ao crescimento exponencial da violência urbana que mata milhares de jovens do sexo masculino todo ano, e do aumento preocupante do feminicídio, que mata mulheres pelo simples fato de serem mulheres, impõe-se uma conversão. Formar para a paz e a convivência. Mais atenção aos meninos, não deixando que os jogos violentos lhes devorem o imaginário e o futuro. E às meninas, para que ponham a serviço da sociedade como um todo sua profunda e visceral aliança com a vida.
Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Testemunho: profecia, política e sabedoria ( Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial), entre outros livros.