Somos todos filhos e filhas do cuidado. Ninguém sobrevive sem ter, ao menos nos primeiros dias, uma pessoa que lhe garanta os cuidados necessários. Mesmo depois, a criança continua precisando de uma mãe ou/e pai. Na Índia, do século V antes de nossa era, Sidharta Guatama, o Buda, afirmava: “Todos/as somos chamados a olhar a outra pessoa como uma mãe carinhosa olha o filho que está em seu útero”.
Desde os tempos antigos até filósofos do século XX como Heidegger, compreenderam: o que mais define o ser humano não é a capacidade de pensar (“O ser humano é um animal racional). Nem é a possibilidade de criar. O ser humano se define, principalmente, pela vocação de cuidar.
Nos anos 60, o psicólogo Carl Rogers afirmava que nascemos indivíduos e, somente através da relação com os outros, nos tornamos pessoas. O que nos torna pessoas é a relação do cuidado, recebido e compartilhado.. O outro do qual devemos cuidar é todo ser humano. No entanto, é também a Terra, a água e todos os seres vivos, com os quais formamos o que Leonardo Boff denomina “a comunidade da vida”.
É urgente lembrar isso para compreender melhor as raízes da crise social e política em que estamos mergulhados. A sociedade contemporânea se desenvolveu muito no plano técnico e científico. Aprimorou a comunicação virtual e isso é maravilhoso. No entanto, nem o conforto proporcionado pela riqueza, nem as facilidades obtidas pelo computador e celular preenchem o imenso vazio que as pessoas sentem.
No século IV, Santo Agostinho orava a Deus: “O coração humano nunca se saciará enquanto não repousar em Ti”. No entanto, atualmente, parece que a maioria das pessoas não se mostra tão interessada nessa relação. Provavelmente, um dos motivos foi que, no decorrer da história, muitas vezes, as religiões apresentaram a Deus como um ser distante da nossa vida. Falaram de uma divindade todo-poderosa. Ensinaram que Deus é amigo de seus amigos e cruel com as pessoas que não o conhecem. Essas imagens mesquinhas de Deus afastaram dele grande porção da humanidade. E essa continua com fome e sede de amor.
Todo mundo quer ser feliz, mas procura a felicidade no consumo e na ambição do possuir. As pessoas correm atrás do lucro, da eficiência e da produtividade. Trocam a emoção genuína do bem-querer pelas conveniências sociais de boas maneiras. Preferem tirar fotografias e selfies aqui e ali, no lugar de conviver e curtir a natureza. No plano da Política, o fato de oito pessoas possuírem o equivalente à metade de toda a humanidade é considerado legal. Não se considera ilegal que governos europeus deixem migrantes africanos se afogarem no Mar Mediterrâneo. De junho a julho, agora, calculam-se em 600 pessoas afogadas pela rejeição dos governos europeus em resgatá-las vivas do mar. Nos Estados Unidos e no mundo, nesses meses, o presidente Trump jogou 3900 crianças latino-americanas, menores de dez anos, separados de seus pais, em campos de concentração. No mundo inteiro, isso provocou um sentimento de indignação, mas ninguém disse que esse louco e criminoso fere as leis vigentes.
O sistema dominante exilou a ética das discussões sobre o viver/l. Ao desprezar a ética como base da organização social, de certa forma, a sociedade humana deserta da própria possibilidade de vida tanto em comum, como mesmo no plano da sobrevivência pessoal e ameaça a continuidade da vida no planeta.
Quem crê em Deus sabe que o seu Espírito se manifesta em todo ato de cuidado e solidariedade. Muitas vezes, as Igrejas têm a pretensão de dizer aos cristãos e ao mundo como devem se comportar na totalidade de suas vidas. No entanto, elas fazem isso no plano da moral pessoal. No âmbito social e político, os que se dizem crentes se preocupam mais com a moralidade das relações pessoais do que com a ética da justiça e da paz. Atualmente, o papa Francisco tem insistido: a ética de Jesus se fundamenta no amor e na misericórdia. Na época de Jesus, muitos dos que representavam a religião usavam Deus e a Bíblia para legitimar o seu poder e seus interesses sociais e econômicos. No Congresso Nacional, a chamada “bancada evangélica” se associa ao que há de pior na política brasileira para defender seus interesses. Lutam por pautas contra os direitos das minorias e a favor de liberar a venda de armas no Brasil. E vários deles se sentem com direito de entrar em negócios escusos, desde que o dinheiro da falcatrua seja colocado em uma empresa que tenha por nome Jesus.com
Sobre esses fariseus e escribas de hoje, católicos e evangélicos, o evangelho repete a palavra de Jesus: “esse povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mt 15, 8). E sem excluir os próprios discípulos, chegou a afirmar: “Em verdade vos digo, os publicanos e as prostitutas chegarão antes de vocês no reino dos céus” (Mt 21, 31). As sociedades indígenas da América Latina propõem como critério de organização social o Bem-viver. Esse paradigma parte do cuidado na relação interpessoal, na organização social e na busca da comunhão com o universo. É um caminho de espiritualidade ecumênica no qual contemplamos e testemunhamos o Espírito que, como diz o livro bíblico da Sabedoria, “enche todo o universo e está presente em toda relação humana” (Sb 1, 7).
Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e biblista, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Tem 55 livros publicados, dos quais o mais recente é “Conversa com o evangelho de Marcos