A sociedade dominante compreende tudo como mercadoria. Tudo tem preço. A terra, a natureza até as pessoas e a própria vida têm preço. Há alguns anos, a ONU aprovou um documento chamado “A carta da Terra”. Era uma declaração dos direitos do planeta Terra. Agora, diversas organizações sociais, reunidas na Ágora dos Habitantes da Terra, trabalham pela aprovação de uma “Carta da Vida”.
A compreensão de que há bens que são comuns a todos e não podem ser privatizados supõe sociedade que tenha ainda algum senso comunitário. Se cada pessoa pensa apenas em si mesma, a regra é cada um por si, só há lugar para a propriedade privada, a competição e o mercado. Entretanto, já em 1854, nos Estados Unidos, o cacique Seattle escrevia ao presidente dos Estados Unidos:
“Como se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa idéia nos parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los? Cada pedaço desta terra é sagrado para meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho”.
As comunidades indígenas e afrodescendentes têm profundo senso comunitário. Até mais da metade do século XX, a maioria dos países se orgulhava em ter educação e saúde gratuita para todos e de boa qualidade. Era o que se chamava “sociedade do bem-estar social”. Nas últimas décadas, o Capitalismo destruiu sistematicamente essa cultura e transforma tudo em mercadoria. Por isso, atualmente, no mundo inteiro, vários movimentos e organizações civis trabalham para que a Terra, a Água, o Ar, a educação básica, a Saúde, o Conhecimento e a Energia renovável sejam considerados como bens comuns, patrimônio da humanidade.
Na encíclica sobre a Ecologia integral, o papa Francisco afirmou: “o clima é um bem comum, bem de todos e para todos” (Laudatum sii, 23). Alguns desses elementos, como a Terra, a Água, o Ar, as florestas e as árvores são bens necessários a todo ser vivo. Dessas manifestações da Vida no planeta, nós, seres humanos, somos administradores/as, não para dilapidar, mas para, de modo harmonioso e juto, partilhar com os outros seres. Entretanto, essa compreensão tem encontrado barreiras nas legislações nacionais.
A ONU tem dificuldades para aprovar uma carta dos direitos da Terra, da Água, do Ar e de outros recursos dados pelo Criador para uso comum da humanidade e de todo ser vivo. Se esses bens são necessários à vida de todos, ninguém deveria ter o direito de se apropriar deles. Uma empresa pública faz o tratamento da água potável e a transporta à nossa casa. É justo pagar por esse serviço, mas não pela água. Se um norte-americano usa, em média, 44 litros de água por dia, enquanto a maioria dos africanos não tem acesso nem a um litro, considera-se absurdo legislar que os maiores consumidores paguem pelo excesso, para custear o acesso a quem não pode ter nem o necessário. A quantidade mínima de água necessária às pessoas durante um dia deve ser garantida gratuitamente a todos. Toda a humanidade tem direito aos bens indispensáveis à vida.
Já há quase dez anos, uma Rede de organizações de solidariedade na Europa definiu:
“Os bens comuns podem ser definidos como o conjunto de recursos, meios e práticas que permitem a um grupo se constituir como comunidade, capaz de assegurar a todos o direito a uma vida digna” (revista Nigrizia, gennaio 2011, p. 79).
A partir desse critério, as organizações sociais podem lutar pela água como bem público, pela defesa da terra (biodiversidade, soberania alimentar), pela superação da dependência dos combustíveis fósseis, pelo livre acesso à comunicação, ao saber e à saúde. Todas as sociedades, mesmo as mais tradicionais, têm alguma forma de mercado. No entanto, tudo não é mercadoria e, como diria Jesus, o mercado deve ser em função do ser humano e da sua vida e não tudo a serviço do mercado.
Neste ano, a Campanha da Fraternidade trata da necessidade de políticas públicas que visem o bem comum. Esse bem comum é o progresso das condições sociais e econômicas para todos. É também o cuidado com a vida no planeta. Faz parte das políticas públicas garantir a sustentabilidade e a “comunidade da vida” da qual nós, humanos, fazemos parte. O cacique Seattle que, no século XIX, escreveu ao presidente dos Estados Unidos, concluía sua carta, afirmando:
“Ensinem as suas crianças o que ensinamos as nossas: a terra é nossa mãe. Tudo o que acontecer à terra, acontecerá aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos. A terra não pertence ao homem. O ser humano pertence à terra. Todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo. O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo”.
Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e biblista, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Tem 55 livros publicados, dos quais o mais recente é “Conversa com o evangelho de Marcos”. Belo Horizonte, Ed. Senso, 2018.