Na véspera do Natal, nos mosteiros, se repete um refrão, baseado no livro do Êxodo: “Hoje, todos saberão que o Senhor virá e amanhã poderão ver a sua glória”. Parece irreal cantar: “Hoje ainda poderá ser destruída a iniquidade do mundo. Amanhã reinará sobre nós o Salvador”.
No mundo atual, a iniquidade do mundo se tornou mais escandalosa. A desigualdade social se multiplica. Milhões de pessoas são excluídas do trabalho digno. Fome e miséria aumentam. Diariamente, milhares de crianças morrem por não terem acesso à água potável. Além disso, a praga do armamentismo ameaça a própria segurança do planeta.
O evangelho do Natal nos assegura: “A Palavra divina se faz carne em nós e em todas as criaturas” (Jo 1, 14). Essa palavra ressoa, hoje, no grito surdo da mãe Terra, agredida e ameaçada em suas condições de vida. Ecoa nos campos contaminados pelos agrotóxicos. É o grito sufocado da irmã Água transformada em mercadoria e privatizada pelas Coca-cola e Nestlé da vida. Essa Palavra de dor e de resistência se faz carne e é acolhida e respondida na luta de resistência dos índios, na caminhada dos lavradores sem-terra e dos pequenos agricultores.
Cantar que amanhã será destruída a iniquidade do mundo é uma profecia que nos anima na esperança. E essa esperança vai além das fronteiras da fé cristã. É algo que diz respeito a toda a humanidade. Ao ser palavra de amor para toda a humanidade, essa mensagem de Natal nos chama a sermos cada vez mais humanos e cuidadores/as do planeta. Isso significa nos abrir cada vez mais aos outros. Implica em priorizar o diálogo, a convivência; reconhecer a dignidade inviolável das pessoas e de todo ser vivo. Quem não é capaz de aceitar o diferente não sabe o que é Natal.
Jesus de Nazaré se revelou como homem, mas acolhe também a dimensão divina do feminino. Revela que Deus é Pai e Mãe e permite que o chamemos de Ele ou Ela. Na realidade do nosso mundo tão ferido por desigualdades sociais, raciais e de gênero, o Natal nos revela os rostos plurais do Espírito Divino. Faz-nos descobrir cada ser humano, homem ou mulher, homo, hétero, ou transexual, como imagens do amor divino.
Desde criança, Jesus quis ser encontrado não pelos religiosos de Jerusalém e sim pelos pastores do campo. Manifestou-se não no templo e sim na manjedoura de Belém. Assim, hoje, o Espírito, Ventania do Amor Divino, quer que o encontremos de formas diversas, desde que seja na realidade da pobreza e da marginalização social. A Palavra feita carne no Natal nos faz reconhecer a presença divina nas manifestações de todas as culturas e religiões. Aqui no Brasil, o Natal nos compromete na defesa diária e intransigente das comunidades indígenas e afrodescendentes, tanto na sua luta sagrada pela terra e pelo direito a viver suas culturas e expressões religiosas. Mais do que isso, nos faz reconhecer e valorizar a permanente encarnação do Espírito Divino nos terreiros afro e nas ocas indígenas.
Vamos encontrá-lo nas tradições dos Orixás. Ele se revela nos Espíritos da Umbanda e nos Encantados indígenas. Vem dançar com seus filhos e filhas índios e negros para confirmá-los na sua resistência profética e dar a toda humanidade a esperança de um mundo renovado.
Hoje, o cântico dos anjos de Belém se torna o cantar discreto e misterioso que o Xamã ianomâmi David Kopenawa escuta dos Xapiris da floresta. Toma a forma do Toré dos índios do Nordeste. São os novos cânticos do Natal da mãe Terra e da natureza ferida que renovam o universo de amor e de vida.
O mundo inteiro se transforma em um imenso presépio. Não do Menino Jesus que, hoje, já não é mais menino e sim o Cristo Ressuscitado que nos vêm pelo Espírito. É essa energia materna de amor que cobriu Maria com sua sombra e, hoje, fecunda o universo com seu amor e sua força libertadora. Feliz Natal para você e para todos os seus entes queridos.
Marcelo Barros