Apenas começava 2018 e já recebíamos uma notícia triste: falecia o grande acadêmico e escritor Carlos Heitor Cony. Respeitado por seu talento literário, perfil ético e imensa cultura, Cony povoou imaginários durante décadas nas bibliotecas e estantes brasileiras. Sua obra inspira respeito, assim como sua biografia. Sem dúvida, uma grande perda para o Brasil.
Também neste começo de ano uma notícia triste a todos nos aterrorizou: o assalto à família de Wallace e Michelle, grávida de oito meses do bebê Antônio. O assalto aconteceu em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Michelle estava grávida de oito meses e foi baleada na cabeça. Levada ao hospital, ficou internada em estado gravíssimo. O bebê nasceu e também ficou em estado grave. Após 23 dias, respira-se ressurreição na casa de Wallace. Michelle recuperou-se e Antônio teve alta e foi para casa com os pais.
O que desejo discutir nesses dois episódios é a questão da fé. A fé que o honesto Cony decidiu abandonar depois de uma temporada nada feliz no seminário. A fé que manteve Wallace de pé sem jamais duvidar um instante sequer diante da tragédia que se abateu sobre sua cabeça e sua família.
Cony se declarava agnóstico. No entanto, apesar de experimentar o derrubar de sua fé após ter se entregado de corpo e alma na vocação sacerdotal que acreditava ter, jamais deixou de conservar-se marcado pela fé e seus símbolos. No catolicismo nasceu e de seu tempo de seminário conservou uma grande devoção a Nossa Senhora e aos santos, além de uma afeição mais que estética aos cantos litúrgicos, às ladainhas, às cerimonias religiosas em geral.
No discurso que marcou sua entrada na Academia Brasileira de Letras, o acadêmico Arnaldo Niskier chamou a atenção para o fato de o novo membro portar com orgulho um chaveiro abençoado de Nossa Senhora de Fátima, que, segundo Cony, “lhe trazia muita sorte”. E declarou ao colega acadêmico que dois símbolos lhe faziam grande bem: o missal romano e a menorá judaica.
A trajetória de Wallace e Michelle foi diferente. Batistas convictos, ambos frequentavam a Igreja e encontravam na Bíblia sua fonte de vida e inspiração. Assim, quando ia ao hospital ao lado da mulher baleada na cabeça em estado gravíssimo, Wallace recordou e rezou o salmo 121 que diz “levantai os olhos para os montes, de onde virá o meu socorro”. Subiu o monte da dor acompanhado e não sozinho.
Durante o tempo em que a mulher e o filho nascido de cesariana de emergência estiveram entre a vida e a morte, Wallace dava entrevistas com uma fé e convicção que fazia tremer quem escutava. Desde o momento da tragédia, acreditou sem titubear no Deus da vida. E hoje, de volta à casa com mulher e filho resgatados das sombras da morte, fala em perdão ao assaltante e atirador, e de como sua fé em Deus está ainda mais firme.
Tudo acabou bem para Wallace e família. Poderia não ter sido assim. Como não foi assim para os pais de Emily Sofia, de 3 anos, morta dentro do carro por uma tentativa frustrada de assalto. Também para Jeremias, de 13 anos, menino bom e estudioso, orgulho da mãe, que jogava pelada inocentemente no Complexo da Maré.
O que destaco aqui é a força da fé. Fé “perdida” por Cony no Deus do Crucificado que povoou seu imaginário de seminarista lúcido e inteligente. Mas na verdade “reencontrada” nas lembranças do mesmo seminário, feitas de devoções caras ao seu coração. E sobretudo na ética que o fez rebelar-se contra injustiças, ditaduras e toda forma de opressão por meio de sua militância literária, jornalística e política.
Fé que estruturou a vida de Wallace e Michelle na leitura da Escritura e na vida de pertença na eclesial que era a sua. Fé que os sustentou no momento mais trágico de suas vidas e lhes permitiu não perder a esperança. E, mais que isso, os ensinou a, diante da violência, não dar entrada ao ódio, mas abrir o coração ao perdão.
Em várias ocasiões, Cony confidenciou a amigos que voltava a olhar de frente a fé que declarara perdida na saída do seminário. A graça era algo que o impressionava, assim como a vida dos santos. E sustentava-o a convicção que não era possível que Deus excluísse pessoas por ele criadas do conjunto dos eleitos. Assim, a esperança não o abandonou e certamente sustentou os embates dos quais participou ao longo de sua vida. Combateu o bom combate e hoje, desde a eternidade, talvez receba alguma informação “do” Crucificado ao qual na sua juventude informara que Deus havia acabado.
O Cristianismo desde seus primórdios é fé em Deus através do humano. Assim, acredita-se em Deus porque se acredita nos outros. A fé dos apóstolos teve como base a fé das mulheres. A fé da Igreja e de todos aqueles que não conviveram com o Nazareno está apoiada sobre a fé dos apóstolos. A fé inabalável de pessoas como Wallace e Michelle sustenta a fé questionadora, lúcida e honesta de Cony, que nunca deixou de dialogar com o ateísmo e o agnosticismo e vice-versa.
A fé precisa de mentes como a de Cony para desmascarar os enganos e arremedos que a reduzem a superstições ou falsas devoções feitas para enganar incautos e tender armadilhas a inocentes travestindo em crença o que na verdade é falácia. E precisa igualmente de corações abertos e amantes como Wallace e Michelle para visibilizar-se e operar amorosamente em um mundo como o nosso.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Teologia latino-americana – Raízes e ramos” (Editoras Vozes e PUC-Rio), livro que acaba de ser lançado.