“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
(CF 1988, Artigo 5o., capítulo I, Título II – Dos direitos e garantias fundamentais).
“Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – Construir uma sociedade livre, justa e solidária;
IV- Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
(CF 1988, Art. 3o., Título 1 – Dos princípios fundamentais)
A construção da Constituição Federal de 1988 se deu num amplo debate entre constituintes e sociedade civil, num processo democrático e de consenso entre interesses em jogo na sociedade brasileira. Desde o movimento das Diretas Já (1984) reivindicando o direito de o povo escolher seus/suas representantes, estamos num processo lento de compreensão e amadurecimento da democracia em nosso País. O Brasil teve poucos períodos de regime democrático e, portanto, ainda estamos em processo de consolidação do nosso sistema político, de tal forma que as pessoas em geral não sabem e não compreendem como a democracia deveria funcionar, por exemplo, através da participação popular na construção de uma sociedade onde cada pessoa tenha assegurado seus direitos fundamentais como ser humano conforme reza nossa Carta Magna (Artigo 3º e Artigo 5º). É bem provável que a maioria não tenha sequer lido e estudado esta Constituição, sabendo pouco do que nela está assegurado em termos de direitos e deveres.
Neste momento passamos por grandes turbulências e crises institucionais nesta frágil democracia que rege a nossa vida em sociedade. O diálogo democrático tem sido substituído por preconceitos, disseminação de falsas afirmações, ações de amedrontamento e muita violência psicológica e física, chegando a assassinatos estúpidos. Trago abaixo alguns assuntos que são utilizados para amedrontar e confundir, a título de reflexão:
1. Um dos recursos discursivos usados historicamente no Brasil para implantar o medo nas pessoas é a ameaça do c o m u n i s m o (argumento muito usado em 1964, antes e depois do golpe). O medo vem pela desinformação. Algumas informações básicas a se considerar:
a) Na carta de princípios do PT não se menciona comunismo como forma de regime governamental (vide consulta nos princípios programáticos do partido no site do mesmo);
b) A chapa Lula/Alckmin se constituiu para assegurar a democracia no Brasil conforme a Constituição de 1988, o que se encontra no Plano de Governo construído no diálogo com amplos setores da sociedade;
c) Nos mandatos de 2002 até 2014, Lula e Dilma sempre se pautaram pela Constituição Federal de 1988, garantindo os direitos cidadãos desta Carta, respeitando as instituições que compõem a democracia (Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo nas suas várias instâncias); As políticas públicas propostas e implantadas não passaram de um programa básico de governança da socialdemocracia (vide Alemanha), e baseadas em conferências populares municipais, estaduais e nacionais de onde surgiram proposições e necessidades da população brasileira em todas as áreas.
d) Historicamente os regimes governamentais comunistas se constituíram através de uma revolução contra regimes autoritários, com uma forte organização popular e com uso de armas. O povo organizado no Brasil não tem armas e não pretende impor um regime autoritário – quem tem armas no Brasil atualmente são as Forças Armadas, as milícias, o tráfico de drogas e muitos cidadãos comuns (por exemplo, SC é o Estado que mais aumentou os Clubes de Tiro – CACs, com 218 registrados em seus 298 municípios; cf. informações na página do Senado, de 25.03.22 “apenas no grupo dos caçadores, atiradores e colecionadores, o total de armas registradas saltou de 255 mil em 2018 (antes do governo Bolsonaro) para 1,1 milhão em 2022.”) Portanto, as armas não estão com os movimentos sociais organizados que reivindicam melhores condições de vida para os grupos mais vulneráveis! De quem precisamos ter medo neste quadro de armamento??
e) A grande batalha que temos no momento é a defesa de um regime democrático contra uma proposta de regime neofascista, autoritário, que não respeita a Constituição Federal com todas as suas instituições. Para esse enfrentamento, que não é só no Brasil, a chapa Lula/Alckmin se formou no intuito de juntar forças entre partidos democráticos, com amplos setores da sociedade civil, com o objetivo de assegurar a democracia, a soberania e a defesa de vida digna para todas as pessoas brasileiras ou estrangeiras que vivem no país. Um plano de governo foi debatido, escrito e registrado no TSE, disponível para conhecimento de todas e todos.
2. A questão de “ideologia de gênero” está sendo difundida já há alguns anos por determinados setores da sociedade de forma equivocada, preconceituosa, perversa até. Sobre essa questão, seguem alguns pontos abaixo:
a) O conceito “ideologia de gênero” é uma invenção popular, não acadêmica. Só veio para confundir! O conceito Relações de Gênero, ao contrário, tem sua origem nos anos 1970 no meio acadêmico nos EUA e Europa para definir e explicar as diferenças e desigualdades entre os sexos feminino e masculino existentes no planeta, em quase todas as culturas. Ser mulher e homem não é algo fixo, estático, universal, e sim, uma construção histórica e cultural com incidências locais e regionais. Ser uma mulher negra ou branca no Brasil tem suas diferenças e desigualdades. Ser mulher do campo ou da cidade também tem suas diferenças, por exemplo.
b) O conceito “ideologia de gênero” está permeado por preconceito e falsas afirmações. Usa-se da estratégia de afirmações falsas a respeito da disciplina curricular escolar de Educação Sexual, cujo objetivo é trazer conhecimento do corpo e das relações afetivas entre jovens, evitando assim gravidezes precoces na adolescência, abuso sexual, cuidados básicos com seu próprio corpo, por exemplo. Vocês conhecem o texto desta disciplina curricular? Que tal conhecer e debater a partir de uma fonte segura e confiável?
c) Há uma gama de falsas afirmações preconceituosas sobre este conceito, mal conhecido e compreendido, para impor medo nas pessoas, fazendo uso do moralismo cultural brasileiro. Há diferença entre moralismo e princípios morais e éticos, por exemplo, como os encontrados no Evangelho e na filosofia. A sociedade brasileira está repleta de falsa moral: eu sonego impostos, mas chamo o outro de ladrão; eu defendo a família, mas sou violento e autoritário; eu defendo a vida, mas desvio os pobres do meu caminho; eu enveneno as terras e águas do planeta, mas critico os ambientalistas. E assim sucessivamente. Falso moralismo não falta em nosso meio.
d) Histórica e culturalmente nos constituímos como uma sociedade patriarcal e racista, onde há a supremacia do homem (macho) branco como modelo do “homem de bem”. Herdamos desigualdades históricas no processo complexo de colonização no Brasil, portanto, estas desigualdades são estruturais. Não podemos esquecer que este país foi construído sobre a escravidão de indígenas e africanos, depois afro-brasileiros, por mais de 350 anos. Numa sociedade que se pauta pelo patriarcalismo (popularmente chamado de machismo), as mulheres se encontram numa condição de subalternidade estrutural (por exemplo, conferir dados do IBGE sobre as desigualdades salariais entre homens e mulheres: normalmente mulheres nas mesmas funções que os homens recebem salário menor. Por quê?). Consequentemente, o modelo de família que se defende é onde há um “chefe”, um “provedor”, como algo natural e naturalizado. Nas teorias das Relações de Gênero há um questionamento sobre as desigualdades de direitos, de costumes, de liberdades, de autonomia para ambos os sexos. É esse questionamento que incomoda parcela da sociedade, trazendo confusão para as pessoas com a tal “ideologia de gênero”, afirmando que é ela que destrói a família, que é ela que estimula as relações homoafetivas, que é ela que vai ensinar e estimular a sexualidade da menininha/o na escola, entre outras inverdades.
e) Estudando história e sociologia, temos conhecimento da luta das mulheres no planeta para conquistar direitos de cidadania, liberdades e autonomia para traçar seu projeto de vida pessoal e profissional. Vemos que cada dia mais mulheres estão no mercado de trabalho, são mais de 50% nas universidades, muitas profissionais competentes em todas as áreas, etc. Este avanço se deu muito rapidamente e a sociedade machista ainda não conseguiu absorver este avanço, reagindo com violência e propondo retrocessos de direitos e costumes. As instituições religiosas são as principais propagadoras e justiceiras contra o avanço de direitos igualitários entre mulheres e homens na América Latina. Algumas beiram a propostas da idade média. Querem uma família patriarcal, uma mulher submissa e dessexualizada.
3. Por último, a polêmica questão do aborto. No Brasil, temos assegurado três modalidades de interrupção de gravidez. “Situações em que o aborto não é considerado crime contra a vida humana. O Aborto no Brasil somente não é qualificado como crime em três situações: a) Quando a gravidez representa risco de vida para a gestante; b) Quando a gravidez é o resultado de um estupro; c) Quando o feto for anencefálico, ou seja, não possuir cérebro. Este último item foi julgado pelo STF em 2012 e declarado como parto antecipado com fins terapêuticos.” (Cf. www.examedaoab.jusbrasil.com.br). A bandeira pela descriminalização dos outros casos de aborto é levantada por organizações de mulheres de todo Brasil por se tratar de uma questão de saúde pública. Há uma estatística subestimada sobre cerca de 70 mil mortes de mulheres ou lesões permanentes por ano em todo o mundo, e mesmo considerado crime em muitos países, segundo a Organização Mundial da Saúde cerca de 55 milhões de abortos ocorreram no mundo, entre 2010 e 2014, e 45% destes foram inseguros. Esses são os porões da existência feminina. Ao fazer um levantamento sobre os gastos na saúde pública com atendimento a mulheres que fizeram procedimentos perigosos de interrupção de gravidez, sabe-se dos quantos milhões são gastos com recursos dos cofres públicos, enquanto milhares de mulheres anualmente morrem ou ficam com graves sequelas físicas e psicológicas. “Entre 2009 e 2018, 721 mulheres morreram depois de abortarem: a cada 10, seis eram pretas ou pardas.” (Brasil de Fato, 8 de março 2021) No Brasil, dados sobre aborto e suas complicações são incompletos pela falta de correta notificação.
NINGUÉM defende o aborto como método de evitar gravidez. Antes de julgar e condenar essas mulheres, precisamos entender o porquê desse alto índice de abortos clandestinos na sociedade brasileira, suas sequelas, e como debater esta realidade – que vem do “porão da sociedade” – de frente, sem preconceitos e fanatismos, falsos moralismos ou idealizações. O corpo feminino e sua sexualidade, na sociedade ocidental, sempre esteve sob controle do Estado e da Igreja, instituições predominantemente masculinas que querem determinar e controlar autoritariamente nossos corpos, nossa reprodução e nossa sexualidade, através de dogmas, leis, normas e costumes.
Deixo essas reflexões sobre questões que estão sendo discutidas e questionadas neste momento tão “quente” na sociedade brasileira. Acredito na capacidade de diálogo e bom senso da maioria do povo brasileiro, no discernimento e análise racional e objetiva sobre projetos de sociedade que estão em disputa. Acredito no desejo de democracia da maioria do povo brasileiro, embora ainda tenhamos coletivamente pouca vontade de participação e colaboração para construção de um Brasil melhor para todas e todos.
Haidi Jarschel
Teóloga luterana, mestre em Ciências Sociais e Religião, Vice-presidente do CESEEP
Santa Catarina, 11 de outubro 2022 (onde me encontro no momento).
Muito bem escrito, instigante, refleivo… PARABÉNS!
Eu também acredito “na capacidade de diálogo e bom senso da maioria do povo brasileiro”!
A paz e a democracia vencerá o “reino das trevas”…!