Ao participar da manifestação do dia 29 de maio, caminhando com um cartaz que pedia a extensão do auxílio emergencial, eu me sentia feliz por estar no meio da multidão de jovens que protestavam contra Bolsonaro e sua necropolítica. Uma dúvida, porém, me assaltava: depois de Bolsonaro, vem o quê? Como provavelmente muita gente faz essa mesma pergunta, partilho aqui um esboço de resposta.
Recordemos a história política recente. Em 2002 a Carta ao Povo Brasileiro marcou o pacto entre o PT e as classes dominantes. O resultado é que, eleito presidente, Lula deixou de lado as reformas estruturais (agrária, fiscal e política) e o pedido de auditoria da dívida pública, como queriam os Movimentos Populares; em compensação, os donos do poder não impediram a realização de seu projeto social-desenvolvimentista. A novidade foi a política externa dos governos Lula e Dilma em favor do bloco emergente do BRICS, no contexto das mudanças geopolíticas provocadas pelo crescimento da China e pela crise financeira de 2008.
Nesse contexto geopolítico, corporações petroleiras, bancos e o aparato de segurança dos EUA tratam de conseguir aliados aqui para reverter o quadro político brasileiro. De fato, as classes dominantes rompem unilateralmente o pacto que dava governabilidade ao PT e concentram suas forças nas manifestações de rua de 2013, redirecionando-as contra o governo Dilma. A Presidenta consegue reeleger-se em 2014, mas não consegue resistir às manobras que resultam no golpe do impeachment.
Preparado por uma ampla campanha de mobilização conduzida pela mídia corporativa e por redes da internet, o golpe consumado em 2016 contou com o indispensável apoio de parlamentares movidos a benesses, militares descontentes com a Comissão da Verdade e diferentes instâncias do Poder Judiciário articuladas pela Operação Lava-jato. Logo ao tomar posse, o governo Temer-PSDB levou a diante a privatização da exploração do petróleo, o alinhamento da política externa aos EUA, a imposição do teto de gastos sociais e iniciou as reformas trabalhista e da previdência, conforme o programa neoliberal da coalizão.
A reação das classes trabalhadoras e dos Movimentos sociais foi forte, mas carente de estratégia: em vez de recuar e acumular forças para a revanche nas eleições de 2018, entrou em todos os embates políticos visando reduzir os danos previstos nas reformas. Essa oposição a forças muito maiores causou muito desgaste aos Partidos de esquerda, que na hora da disputa eleitoral estavam exauridos.
Mas a coalizão das classes dominantes também se desgastou nos dois anos de governo, dada a diversidade de interesses entre os grupos que a compunham. Por isso não teve alternativa senão recorrer a Bolsonaro e suas milícias (digitais e armadas) e a políticos arrivistas para assegurar a continuidade da política econômica, a partir de então confiada a Paulo Guedes.
Empossado o presidente, tem início um governo que não sei descrever. Nem é necessário. O que quero ressaltar aqui é que cada elemento da coalizão está recebendo sua parte. Os bancos foram agraciados com um Banco Central que só eles controlam. O agronegócio e as mineradoras lucram com o aumento das exportações. Empresários realizam o sonho da precarização do trabalho. Militares tiveram aumento sem perder os privilégios da aposentadoria e pensões, além de pelo menos seis mil cargos no governo. Parlamentares do Centrão ganharam um orçamento paralelo para pavimentar sua reeleição em 2022. Mas quem está aproveitando mesmo a crise como oportunidade é o pseudoempresariado de rapina, com a porteira aberta para se apropriar de terras públicas, desmatar, minerar em terra indígena e devastar os recursos naturais sem fiscais do governo para multar. E o presidente blinda sua família, seus amigos e suas milícias colocando os aparelhos do Estado a seu serviço. Tudo isso sob o aplauso de fascistas, religiosos fundamentalistas e grupos de ódio.
É evidente que após mais de dois anos de uso privado do Estado, e tendo que enfrentar a pandemia de covid-19, o governo dá sinais de que perde força e já pressente que será derrotado nas eleições do próximo ano. É evidente que ele vai apelar para a violência para sobreviver, e viveremos tempos difíceis até que, tendo estrebuchado até o fim, ele se apague definitivamente.
Aqui retomo a pergunta que me veio à mente no 29M: o que teremos depois de 2022?
A mídia corporativa (notadamente grupos Globo, Folha e Estadão), que expressa os interesses do stablishment capitalista – bancos, agronegócio, grandes empresas – mostra que Bolsonaro tornou-se um estropício, mas só será removido depois de privatizar a Eletrobras. É bem possível que depois disso essa gente aceite uma grande coalização eleitoral, desde que seja para fazer um governo de reconstrução nacional que conserte os estragos dos desmandos bolsonaristas sem retirar os direitos adquiridos pelos privilegiados nesses cinco ou seis anos. Não é a melhor saída da crise, mas talvez seja o governo possível, a menos que consigamos mudar a atual correlação de forças.
Mas eu não estava na rua, no 29M, para eleger Lula ou qualquer outra liderança nacional para um governo de salvação da República! Estava no meio de gente jovem, talvez em sua maioria mulheres, para, tirando Bolsonaro, combater a pandemia, a fome, o desemprego e a miséria. Num mundo que caminha para a catástrofe climática, ilude-se quem pensa que dentro do sistema capitalista haverá salvação para a maioria da espécie humana – empobrecida e sem lugar num mundo cuja tecnologia avança esmagando populações indefesas. Até o Papa sabe disso e já falou – sem usar a palavra capitalismo – que “essa economia mata”. E não queremos morrer antes do tempo!
Era em defesa da vida plena – a vida da espécie humana e das espécies que compõem a grande comunidade terrenal – que eu e milhares de pessoas corríamos o risco de infecção pela covid-19 caminhando e gritando. Antes de nós e em outros países marcharam outras multidões de jovens. Penso especialmente na juventude chilena, que agora tem a possibilidade de escrever uma nova constituição para seu país. Também chegaremos lá, um dia.
Sei muito bem que essa luta será longa e que serei um privilegiado se ainda conseguir vislumbrar o alvorecer do mundo de Paz, Justiça e Cuidado com a Terra. Nele a espécie humana, enfim reconciliada com toda as espécies da Terra, conviverá em paz. Mais feliz serei se pelo menos uma bisneta ou bisneto fizer parte dessa nova Humanidade.
Para Tereza, que mantém viva a chama da Esperança.
Artigo publicado originalmente no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 8 de junho de 2021.
Pedro A. Ribeiro de Oliveira é professor, sociólogo, membro da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política e membro associado do CESEEP.