Por Felipe Lima Teixeira*
“Bendita sede por arrancar nossos olhos da pedra.
Bendita a sede por ensinar-nos a pureza da água.
Bendita a sede por congregar-nos em torno da fonte.”
– Orides Fontela
Inúmeras vezes encontramos nas narrativas bíblicas menções as fontes e outros lugares que disponibilizam água. Além da óbvia necessidade física e dos benéficos que a água traz para o ser humano, ela também serve de encanto para os apaixonados pelos rios, baías, cachoeiras, nascentes, praias e tantas outras paisagens que protagonizam esse conjunto de duas partes de hidrogênio e uma de oxigênio.
É tão belo ver a água fazendo seu curso, hora agitada com suas correntezas, hora calma como na beira de um açude. Em pequena quantidade como num copo d´água, em grande quantidade como no oceano. Potente! Sua potência se adequa no ambiente em que se está, seja na piscina, no rio ou no mar, como canta Bethânia: Cachoeirinha, lago, onda, gota.
É que nem Deus que consegue habitar tanto na nossa pequenez como na imensidão infinita do universo. Adequação de dois elementos que podem ser um só. Potências de duas forças que convergem para a manutenção da vida.
As tradições religiosas em suas místicas mais cosmogônicas acreditam no poder curativo, purificador e mágico da água. A água é aquela que lava, que purifica, que molha, que batiza, que serve de benzeção. Muitos rituais religiosos utilizam o simbolismo da água para representar força restauradora e até mesmo força dos deuses como vemos nas mitologias nórdicas, greco-romanas, iorubás, ameríndias e tantas outras formas de tentar explicar a relação sagrada com esse elemento tão fundamental.
Outra justificativa muito plausível e que nos abre mais uma chave de reflexão é do desconhecimento praticamente absoluto da vida aquática, seja ela doce ou salgada. Pesquisas dizem que só conhecemos 3% dos oceanos. Muitas histórias de pescadores lendas e mistérios rondam as águas. Água é mistério. Mistério de vida.
Tales de Mileto, grande primeiro responsável por romper o pensamento mitológico e dar o pontapé inicial da filosofia, acreditava na existência de uma matéria-prima básica responsável pela origem do Universo: a água. A água como gênese do universo. Ele observou que, sem água, tudo morria. Logo, ela era a fonte da vida.
Jesus de Nazaré afirma que Ele é fonte de água viva, que concede vida e nos faz permanecer acreditando e lutando a favor da vida. Gosto muito de uma frase que os indígenas escreveram na carta à Mãe Terra em nome de todos os povos tradicionais: A luta pela Mãe Terra é a mãe de todas as lutas.
Precisamos reconhecer a Mãe Terra também como Mãe Água, já que o planeta Terra é composto por 70% de água. Esse reconhecimento deve ser afirmado na crença de que a Mãe Terra também é possuidora de direitos e precisa ser respeitada em suas necessidades básicas. Fadada ao fracasso é a humanidade que trata a Mãe Terra como uma criatura que simplesmente serve, que está sempre à disposição e pode ser explorada. Protegê-la é defender a vida.
Até nosso corpo, templo do Espírito de Deus, também é composto por 70% de água. Ela ajuda a hidratar, a levar os nutrientes como oxigênio e sais minerais até as células, além de expulsar as substâncias tóxicas do corpo. Somos, em grande parte, água. Afinal, quem de nós não sente uma conexão incrível quando estamos tomando um banho de cachoeira e sentimos aquela delícia em nossas costas? A água nos conecta com nossa própria composição, substância.
Os povos originários possuem uma grande relação sagrada e existencial com a água. No pensamento indígena a água também é motivo de sustento no alimento, não só por servir os pescados mas por ser utilizada na magia que é o cozimento e nos molhos. Água que alimenta o fruto da terra e faz germinar as sementes, que deixa as campinas verdes e dá de beber aos animais.
A Música Popular Brasileira em sua carga poética e folclórica retrata a água como elemento de fé e possuidor de vida. Água é Sagrada nas suas mais diversas formas. Deus é a água! Ou melhor, a água é a potência feminina de Deus não só por ser um substantivo feminino mas por transmitir a força na fluidez mutável, adequável, necessária para existência.
Já escutei muitas homilias, poemas, músicas e li muitas coisas que falavam sobre saciar nossa sede de Deus, ir a fonte e beber tanta água, mas tanta água, que dá a ideia de que ficar com sede é ruim. Talvez seja por essa cultura da fartura desacerbada em que vivemos ou do mero consumismo sem sentido.
Confesso que eu prefiro permanecer na sede, nunca me saciar para continuar indo as fontes, indo as fontes encontro Deus.
Permanecer com sede nos abre a uma experiência incansável e constante de busca às fontes essenciais, não nos acomoda na beira do caminho mas nos faz caminhar mais e mais em busca das fontes, sejam pequenas, sejam grandes, fontes. Fontes com água, sem exagerar na bebelança para poder, sem demora, já querer ir a outras fontes, fontes longe, fontes perto, mas que façam caminhar sempre e nunca desanimar, nunca me saciar e parar. A vida só existe no buscar.
Para nós rogo a Sua benção, Mãe Água!
Felipe Teixeira é teólogo, assessor de pastoral e juventudes. Coordenador da Pastoral da Educação da Arquidiocese de São Salvador da Bahia. Pesquisa pastoral escolar e o Sagrado nas espiritualidades marginais.