Dois romances de ficção, modernos ou pósmodernos, com tramas distintas mas convergentes. Ambos norte-americanos, ambos refletem o mundo da droga e do álcool, ambos com mais de mil páginas, ambos de um realismo ao mesmo tempo mágico e brutal, ambos colocam em cheque a infância e a adolescência marcadas por traumas familiares e sociais. O primeiro tem por título Infinite Jest, de David Foster Walace, lançado em 2006, todo ele ambientado em Boston. Coloca em cena o esporte agonístico, a dependência e a busca do prazer ilimitado, seguido da desilusão, do fracasso e da impotência. O segundo é The Goldfinch, de Donna Tartt, publicado em 2013, cujo drama se desenrola entre New York, Las Vegas e Amsterdam, nas vias tortuosas do crime organizado.
O autor e a autora reproduzem respectivamente existências desde cedo atribuladas por tormentas socio-familiares, especialmente durante a passagem da infância à adolescência. Caminhos oblíquos, enviesados e turbulentos, onde se cruzam, de um lado, a aspiração ao sentido profundo da travessia humana pela face da terra e, de outro, o acesso fácil aos toxicodependentes e ao consumo de bebida. O resultado são vidas partidas e devastadas pela alternância extrema entre euforia e depressão. A própria narrativa, numa descrição não cronológica e cheia de acidentes, é construída de fragmentos: ruínas, escombros, cinzas de trajetórias retorcidas pela depedência e pela desesperada tentativa para escapar aos seus grilhões invisíveis, mas praticamente irreversíveis.
Trata-se, nos dois casos, de um mergulho de cabeça aos porões e ao submundo dos narcodependentes, da ingestão desmedida de álcool e do envolvimento com o crime organizado em nível internacional. Uma visão nua e crua, viagem lúcida, penetrante e dolorosa pelo inferno do sofrimento humano, onde um humorismo sombrio e trágico se mescla ao drama de uma dor sem nome, sem trégua e sem remédio. Não o inferno após a morte, de Dante no clássico A divina comédia, mas o inferno em vida pelas ruas de New York, Boston, Las Vegas e Amsterdam. Desfilam, lado a lado, o consumo cego e obcessivo de droga e álcool, a fuga alucinante da realidade e o vomito repetido à exaustão, como sinal de retorno irremediável ao “aqui e agora” adverso e revestido de medo e angústia.
No olhar de David F. Wallace e de Donna Tartt não é difícil surprender um sentimento de indisfarçada compaixão por personagens como Theodore Decker (The Goldfinch) ou Harold Incadenza, Gately e Lenz (Infinite Jest). A trama de fundo, embora em formas e graus diversos, gira em torno de uma pergunta crucial, fundamental, quando não letal: como fugir à “gaiola de ferro” onde a vida nos encerrou pelas mais diferentes circunstâncias? Aparentemente, o álcool e a droga, ou a concorrência do jogo (tênis), se apresentam como a via mais curta, ao alcance da mão. Cedo, porém, constata-se a armadilha, uma verdadeira ratoeira, labirinto sem via de saída. Espaço e tempo se reduzem sempre mais, como num círculo cerrado, espécie de esperial ao contrário, onde os braços da gaiola se fecham irremediavelmente sobre as perspectivas de futuro. No fim da linha, não está descartado o suicídio ou a tragédia, como respectivamente o de James Incadenza ou o pai de Theo Decker.
Resta alguma esperança? Em Donna Tartt, a obra do pintor holandês Carel Fabricius que dá o nome ao romance – The Goldfinch, de 1654 – percorre toda a narrativa como uma espécie de advertência que o valor da arte e da estética encontram-se acima do seu uso distorcido para fins comerciais e especulativos. Em David F. Wallace, o apelo ao Poder Supremo nos grupos de AA e NA (Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos), por exemplo, apesar da visão crítica do autor, deixa tansparecer um pequeno fio, frágil mas tenaz, uma fé menor que “um gão de mostarda”, a qual se não é capaz de “transportar montanhas” (para usar a linguagem do Evangelho, Mt 17,19-20), ao menos pode reagrupar e sustentar os fragmentos de uma vida varrida pelos ventos da tempestade.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, Roma, 13 de abril de 2016