
Para nos introduzir um pouco no tema do Curso de Verão 2017: “Educar para a paz em tempos de injustiça e violência”, apresentaremos algumas entrevistas com os convidados que serão expositores durante o Curso.
O entrevistado dessa vez é Lucas de Deus, 25 anos, Cientista Social formado pela PUC-Rio, candomblecista e membro do Coletivo Nuvem Negra.
Ceseep – Qual a importância de, em tempos como os que vivemos, educar as pessoas para a paz?
Lucas de Deus – É de extrema importância, em qualquer tempo, educar as pessoas para a paz, contudo acredito que precisamos desnaturalizar e problematizar o que estamos dizendo ao reivindicar a “paz”. Não podemos mais achar que todos compreendem da mesma maneira. Digo isto, pois, existem lideranças religiosas que reivindicam uma ideia de “paz” seletiva. Em outras palavras, a maioria das igrejas neopentecostais, por exemplo, desejam a paz de Cristo ao mesmo tempo em que concebem a perseguição às religiões de matrizes africanas como um ato sagrado de fé.
Neste sentido, acredito que educar para a paz implica buscarmos descolonizar, desconstruir e repensarmos nossas concepções epistemológicas e cosmológicas a partir de uma base social que respeite e compreenda a diversidade como um valor incondicional e que, portanto, renegue o princípio de uma verdade única e absolutizante. Parece interessante caminharmos para uma concepção de sociedade no qual, enxerguemos a importância e a riqueza de várias “verdades” igualmente reconhecidas e respeitadas.
Ceseep – Na sua exposição falará sobre “Violência contra religiões de matriz africana na baixada Fluminense” como se insere essa questão na sociedade nos dias atuais?
Lucas de Deus – É uma das questões centrais contemporaneamente, precisamente porque vivemos em um contexto no qual, determinados setores “evangélicos”, sobretudo neopentecostais, profundamente conservadores, vêm crescendo quantitativamente e assumindo cada vez mais cargos de poder dentro das estruturas do Estado. São setores evangélicos que se baseiam em uma teologia extremamente belicosa e demonizadora da diferença e mais especificamente, demonizadora das religiões de matrizes africanas. São instituições religiosas que veem na agressão, na violência a estas religiosidades de matrizes africanas quase como um dogma religioso.
Estamos em um contexto do qual precisamos refletir seriamente sobre o papel que determinadas igrejas tem cumprido na elaboração e disseminação da “Teologia da Batalha Espiritual”, pois é baseado nesta teologia que fiéis tem encontrado incentivo e justificava para seus atos de violência. É extremamente grave o crescimento de uma mentalidade, supostamente religiosa, que não permite que nem a tolerância e muito menos o respeito seja difundido.
Ceseep – A violência contra as religiões de matriz africana representa também o racismo do brasileiro de ainda negar a religiosidade mais ligada ao povo negro?
Lucas de Deus – Esta violência histórica é uma das faces do racismo na sociedade brasileira. É o racismo que estrutura e legitima todo o processo de inferiorização, subalternização, perseguição e demonização das tradições religiosas de matrizes africanas. Neste sentido, é importante ressaltar que categorias como intolerância e discriminação são insuficientes para compreendermos este cenário de constaste violência, pois invisibiliza as relações raciais implicadas dentro deste processo. Por este motivo prefiro utilizar a noção de “racismo religioso”.
Em um país forjado sob o sequestro e posterior escravização de milhões de africanas/os, não podemos continuar tratando o racismo como um fenômeno social menor, transversal, resultante de desigualdades puramente econômicas. O racismo é estrutural e sistêmico!
Todo este processo de violências acometido contra estes religiosos resulta de uma estrutura social racializada, no qual os costumes e saberes religiosos negro-africanos sempre foram vistos como “feitiçaria”, “magia” e, portanto, práticas demoníacas. Vivemos em uma sociedade que hipervaloriza as culturas ocidentais em detrimento das culturas africanas e afro-brasileiras. O racismo, nas palavras de Frantz Fanon, visa suprimir uma “forma de existir”, e as religiões de matrizes africanas representam exatamente uma forma de ser e existir não ocidental, europeia e branca.
Ceseep – O ENEM abordou “Os caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”, o que achou desse tema e dessa abordagem? Falar de intolerância é uma forma de combater a violência? As religiões de matriz africana são as que mais sofrem preconceito e intolerância?
Lucas de Deus – Não podemos esquecer que o Estado brasileiro, a Igreja Católica e outras denominações cristãs, perseguiram e demonizaram declaradamente estas religiosidades ao longo da história. Além disso, contemporaneamente pesquisas identificam um crescimento vertiginoso na violência perpetrada contra os terreiros de matrizes africanas. Casos de incêndio, invasão e depredação dos terreiros; apedrejamento, xingamento e impedimento de acessarem espaços públicos como escolas são noticiadas em mídias formais e alternativas. Vale ressaltar que estas agressões são protagonizadas por evangélicos, precisamente neopentecostais. Portanto, é inegável a importância desta temática para a sociedade brasileira, uma vez que inclusive, o processo de perseguição às religiões de matrizes africanas está intrinsecamente conectado com a formação do Estado brasileiro.
E sim, não há dúvida de que as religiões de matrizes africanas são os principais alvos de violência que vão desde um xingamento a uma agressão física de adeptos e dos terreiros.
Com certeza falar, debater e refletir sobre intolerância religiosa, ou melhor, o “racismo religioso” – no que diz respeito ao processo de perseguição as religiões de matrizes africanas – é um primeiro e tímido passo para se combater este grave problema, entretanto, não é o suficiente. É preciso construir e efetivar políticas públicas eficazes e neste sentido, as instituições educacionais tem deixado muito a desejar. A escolha deste importante tema não reflete a prática e o real interesse do Ministério da Educação em resolvê-lo. Faço esta afirmativa, pois a aplicação da 10.639/03 que regulamenta as Diretrizes Curriculares Nacionais para uma Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e que, portanto apresenta subsídios para se combater a discriminação religiosa continua sendo negligenciada.















