Passou o primeiro turno das eleições, mas não a perplexidade. Esta, ao contrário, aumentou. Por quê? Primeiro, por causa da onda avassaladora que emergiu das urnas, transformando radicalmente a configuração política do Brasil em sua quase totalidade. Em seguida, pela percepção de um novo elemento que despontou como protagonista nos resultados dessas eleições: a religião.
Os resultados desse primeiro turno trouxeram surpresa após surpresa. Vários candidatos que as pesquisas davam como favoritos em diferentes estados não apenas não ganharam sequer direito a um segundo turno, como ficaram em último lugar na votação.
Partidos até então líderes no cenário político brasileiro encolheram sua presença nos governos estaduais, na Câmara dos Deputados e no Senado.
Outros até então pequenos e com parca representação cresceram exponencialmente. E a corrida presidencial, embora confirmando as previsões das pesquisas, superou-as consideravelmente.
Enquanto tentamos nos recuperar das surpresas, outro dado novo nos atropela: o protagonismo que a religião passou a ter nas campanhas de tantos candidatos, especialmente em boa parte dos vitoriosos.
O discurso sobre Deus, a compreensão da própria candidatura como vocação dada por Deus, a Bíblia utilizada como epígrafe de entrevistas transmitidas pela mídia se fazem sempre mais presentes na propaganda eleitoral e nos debates entre os candidatos.
Não se trata, porém, do discurso cristão que nos acostumamos a ouvir, característico das Igrejas históricas, católica ou protestante.
A ênfase é na afirmação da supremacia gloriosa de Deus sobre tudo e todos e a conexão disto com o patriotismo exacerbado: a pátria acima de tudo. Os versículos bíblicos – às vezes não citados corretamente – são isolados de seu contexto. E apoiam as afirmações do candidato e não o contrário.
Se Deus está acima de todos, não parece estar acima daqueles que o citam a torto e a direito, em perigosa proximidade com o segundo mandamento que manda “não tomar seu Santo nome em vão”.
Servem tais citações como respaldo e legitimação ao que os candidatos em questão querem propor ao público como ideias a assimilar e projetos aos quais aderir.
É a Bíblia a serviço do discurso eleitoral e não o contrário. É a Palavra de Deus utilizada como apoio para afirmações e declarações que andam distantes daquilo que as Escrituras apresentam como sendo o permanente diálogo de amor e vida em plenitude do Deus da Aliança e da Promessa com seu povo.
Nessas declarações encontram-se incitações à violência e promessas de armar a população e militarizar as escolas. Ouvem-se afirmações discriminatórias em relação a vários segmentos da população: merecem destaque os negros, as mulheres e os LGBT.
Fala-se com desprezo dos direitos humanos e das conquistas duramente conseguidas pela humanidade e concretamente pelos brasileiros ao longo de décadas. Direitos laborais, políticos e sociais são definidos como males a extirpar.
Percebe-se, portanto, uma explicitação da fé cristã descolada dos valores que os candidatos em questão pretendem defender: a família, a moral, a segurança.
Enquanto no Evangelho de Jesus Cristo o que se lê é a apologia do acolhimento ao outro, do perdão, da não violência, da inclusão de todos, os discursos políticos dessas eleições em nosso país vêm carregados de agressividade, eu diria até mesmo de morbosidade.
A ligação constitutiva do cristianismo entre a fé e o compromisso transformador com a justiça passa longe das eleições brasileiras. O que se vê é o louvor como fim em si mesmo, a afirmação da fé em Deus apoiando e legitimando propostas excludentes, agressivas e discriminatórias.
E, pior que tudo, a banalização da violência e da morte como preço necessário a pagar para trazer segurança a um povo cansado de ver a própria vida e de sua família permanentemente em risco.
Essa combinação explosiva de patriotismo ultramontano e religiosidade fundamentalista infelizmente não é nova. Já foi vista em outras situações e mais ou menos recentemente na Europa do final dos anos 30, inicio dos 40. O espaço onde aconteceu foram os países cristãos.
Ali também Deus foi convocado para justificar um novo regime que parecia empoderar países em crise. Os resultados são bem conhecidos. A humanidade amargou o maior genocídio de todos os tempos, pelo qual até hoje paga as consequências.
Ninguém acreditava que líderes que se diziam tementes a Deus pudessem realizar suas enlouquecidas propostas. Tiveram que pagar para ver.
E viram quando já era tarde. Às vésperas do segundo turno, acompanhamos com angústia o rumo que toma nosso país. Que nos ajude a esperança, virtude indispensável que a fé no verdadeiro Deus nos ajuda a não perder.
Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), sua mais recente obra, entre outros livros.