Zaqueu é um parasita de sua época. Como “chefe dos combradores de impostos e muito e rico”, e como tantos ao longo da história, nutre-se da seiva produzida pelo trabalho de outras mãos. Seus contemporâneos e conterrâneos possuem razões de sobra para execrá-lo. Na sua condição de humano e pecador, na verdade, não passa de um verme. Mas há uma diferença fundamental: é um verme humano que “desejava ver quem era Jesus”. Em outras palavras, ouvira falar daquele homem divino-humano, que atraía as multidões com suas palavras e feitos. Uma espécie de sábio itinerante que, além disso, operava milagres. Diante dessa figura misteriosa, Zaqueu trata de identificar o segredo de sua própria existência. Dá-se conta que nenhum verme humano foi feito para rastejar pelo solo infestado de violência, pecado e morte. Ao contrário, a semente do verbo encarnado, que nos faz “imagem e semelhança de Deus”, deve desabrochar. De verme, transfigurar-se em borboleta, buscar o calor do sol, o céu azul o ar livre.
E o segredo dessa descoberta, e da própria existência humana em sua dignidade mais oculta, vai muito além do que diz a opinião pública e a multidão. Vai muito além das enganosas aparências. Em lugar destas, de fato, Jesus “ergueu o olhar e disse: Zaqueu desce depressa, porque hoje devo entrar em sua casa”. Onde todos viam o publicano dos impostos, e o odiavam por isso, Jesus penetra o olhar com maior profundidade. Vindo de um coração transparente, seu olhar é capaz de ver o coração e a alma. Enxerga um homem rodeado bens, sem dúvida, mas sedento de algo que ele mesmo não sabe o que seja. Ao confrontar-se com essa alma pobre e ressequida, o Senhor se auto-convida, oferece-se para visitá-la no seu ambiente mais íntimo e famliar. Dispõe de tempo para sentar-se à mesa com ele.
Em meio à multidão, e apesar dela, dois olhares se cruzam. De um lado, um homem que aparentemente tem tudo, mas intui que lhe falta o essencial; do outro, um homem que nada possui, mas tem a oferecer tudo o que o ser humano busca em sua frenética corrida pela face da terra. Nasce um encontro insuspeitado e escandaloso: “Vendo isso, todos começaram a criticar: Ele foi hospedar-se na casa de um pecador”. E logo, amadurece um processo de conversão. Nasce em Zaqueu o desejo de dividir com os pobres “a metade de meus bens”. E “se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais”. A conclusão de Jesus, uma e outra vez, não deixa de surpreender: “Hoje a salvação entrou nesta casa!”. Mais do que fixar-se no pecado enquanto tal, Jesus aponta o horizonte da salvação, porque veio “procurar e salvar o que estava perdido”. Mas tal horizonte pressupõe uma profunda mudança que compromete a vida como um todo.
Entre ambos, a multidão irrequieta e o sicômero. A multidão, não raro, se caracteriza pela miopia ou pela inércia. Busca em geral o caminho mais fácil e imediato, aquele que não exige tanta reflexão. Espécie de “Maria vai com as outras” – como se diz. Mais ou menos cegamente, segue a crista da onda, a moda do momento, a estripitosa e apelativa publicidade do mercado. Caminha aos atropelos, de forma impetuosa, levando tudo diante de si, como as águas turvas revoltas e de um rio após a tempestade. Daí a expressão “rio de gente”. Arrastado pela fúria da corrente, Zaqueu encontra-se impossibilitade de “ver a verdade”. Mas a intuição e a força do desejo se sobrepõem.
Sendo de baixa estatura sobe ao sicômoro. Uma árvore, um trapolim para olhar para além da multidão que, surda e muda, avança inexoravelmente. Um apoio para parar um pouco, refletir e enxergar para além do senso comum. Um ponto a partir do qual é possível ampliar a visão corriqueira e cotidiana. O itinerário de nossa história pessoal tem destes momentos, onde necessitamos de um ponto de apoio para enxergar mais longe e mais profundamente. Em termos metafóricos, sicômoro pode ser uma enfermidade repentina, uma ferida não cicatrizada, uma separação difícil, a perda de uma pessoa querida, um fracasso onde tudo apontava para o sucesso, uma mudança indesejável, e tantas outras adversidades… Na verdade, momentos de dor, solidão, sofrimento e prova. Experiências vivas que dilaceram e sangram, mas que, ao mesmo tempo, depuram e purificam o olhar da alma para um passo a mais no percurso da conversão. Experiências de cruz e de morte, onde o aparente abandono representa uma pequena chama em vista da ressurreição.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Roma, 30 de outubro de 2016