O ano de 2020 abriu diversos centenários de pessoas ilustradas de nossa terra. Entre eles está o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, em 9 de janeiro. Considerado por muitos dos grandes poetas lusófonos, João Cabral foi galardoado em vários prêmios de vida, entre eles o Prêmio Camões, ou maiores prêmios a autores que contribuíram para o enriquecimento de patrimônio cultural e literário da língua portuguesa.
Uma poesia de João Cabral tem um mistério de realismo e transcendência. Trata-se de um traço intrigante para o agnóstico declarado que ele sempre assumiu. No entanto, sua fé na imanência da vida, nenhum concreto duro da exposição é sempre presente no seu fazer poético. E em meio às muitas expressões poéticas do seu gene indiscutível, esta é uma das que mais tem o mundo não habilitado.
Sou leitora devota de João Cabral. O encontro com sua poesia deu-se por Morte e Vida Severina , o poema épico sobre seu povo nordestino, cantado em versos rigorosos e belos com métrica impecável e contínua, mas inegável paixão. Foi no teatro que pela primeira vez vi e ouvi os versos de Cabral musicados por Chico Buarque. Foi uma experiência estremecedora de encontro com a realidade de um povo que era o meu, mas qual é a experiência tão distante.
O poema, ao mesmo tempo em que não traz nenhum título ou nome do personagem central – Severino – nome muito comum no Nordeste, deixa claro que trata mais do que um nome próprio de um indivíduo. Severino, figura simbólica e emblemática é um aposentador. Ou seja, um migrante, um feito, um caminhante. Vai em busca da vida. Tem sede, trabalho e remuneração justos, plenitude de vida. Sede de viver uma vida que não seja apenas morte adiada. Severino é uma personalidade corporativa dos sertanejos nordestinos. Severina na verdade é a vida que leva. Vida dura e castigada, pela seca, pela opressão, pelo latifúndio, sempre ameaçada pela morte.
Severino migra porque esse é o seu destino. Aposentado, vive saindo de um lugar e volta para outro, em busca de vida, trabalho, recursos de sobrevivência. Neste sentido, o paradigma não é apenas o nordestino, mas o ser humano, sempre um caminhante, um peregrino nesta vida guiada pela sede de viver mais plenamente. Seu destino é o mesmo povo de Deus no deserto e todos os migrantes que hoje cruzam o planeta em busca de melhores condições de trabalho e de vida. E que nessa faixa de opções muitas vezes a morte nas águas do mar ou na atmosfera do deserto.
Em seu itinerário, Severino encontra várias vezes com aqueles e aqueles que, como ele, são condenados a viver a vida Severina. Talvez uma das passagens mais belas de todo o poema seja aquela em que o aposentado separe com o funeral de um trabalhador da terra cuja morte os companheiros expõem uma causa. Sua morte é fruto da injustiça, da acumulação de capital, do latifúndio e da ganância de uso de terras, que explorou sua força de trabalho e nada deu. Vai ser depositado na terra, uma terra que bebeu seu suor, sua juventude, sua força de marido. Uma poesia de João Cabral, indissoluvelmente unida à sua perspectiva de realidade, vai dar toda a sua medida.
Já desesperado para encontrar a melhor vida e pensar em interromper sua antes do tempo para amenizar o sofrimento, Severino encontra uma conversa com um humilde carpinteiro de palavras inspiradoras. O nascimento da criança, o filho do seu interlocutor, vai desviar a morte para retornar a um crer na vida.
Severino vai concluir que, embora seja difícil defender apenas uma palavra de vida, Severina, a própria vida, mostra-se teimosamente mais forte que a morte que procura engoli-la. E João Cabral, poeta e cantor, foi para mim, naquele momento, um mensageiro de Boa Notícia. Este é o outro nome do Evangelho que Jesus Cristo anunciou em plenitude e continua a ouvir por várias vias, inclusive pela poesia comprometida por um diploma de pernambucano que até muito próximo da final de sua vida não assume como crente.
Obrigada, João Cabral, e feliz centenário!
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.