Frei João Xerri transvivenciou no Domingo da Santíssima Trindade, 30 de maio de 2021, aos 74 anos, vítima do genocídio bolsonarista que expõe milhares de vítimas à pandemia de Covid-19. Homem de conexões internacionais, tinha aliados em vários pontos do mundo, e tudo que lhe caía em mãos de importante – denúncias de violações de direitos humanos, causas solidárias, luta dos sem terra e sem teto, movimentos libertários – ele cuidava de divulgar com uma presteza exemplar, e isto antes mesmo de existir internet.
João nasceu em Malta, quando a ilha do Mediterrâneo ainda era uma colônia britânica, e ingressou na Ordem Dominicana no mesmo ano que eu (1965). Veio para o Brasil em 1974, e se fixou em Faxinal (PR), onde aprendeu português. Naturalizou-se brasileiro em 1993. Em março de 2002, recebeu o título de “Cidadão Paulistano” da Câmara Municipal de São Paulo.
Durante dois anos atuou na área rural do Paraná. Em 1978, no Rio, cursou pós-graduação em Teologia Pastoral, na PUC. O contato com os favelados de Chapéu Mangueira, no Morro da Babilônia, atrás de nosso convento, no Leme, lhe abriu os olhos para a realidade dos pobres.
Eleito prior do convento do bairro de Perdizes, em meados de 1980, veio para São Paulo. Foi então que se estreitaram nossos laços de cumplicidade.
Fiz dele personagem de meu livro “Talita abre as portas do Evangelho”. Foi uma maneira de homenagear um confrade dominicano com quem eu tinha muita sintonia. Éramos confidentes. Ao lado de frei Oswaldo Rezende, ele oficiou a celebração eucarística, em Belo Horizonte, da comemoração de meus 70 anos, em 2014.
Na noite de 28 de maio de 1982, levei-o a São Bernardo do Campo para conhecer a família de Lula, que se encontrava preso devido às greves metalúrgicas contra a ditadura. Desde então, passou a apoiar o líder político, embora, como eu, jamais tenha assumido filiação partidária. Em 15 de outubro de 2004, almoçamos em São Paulo. Contei-lhe da minha disposição de deixar o governo federal, no qual atuava como assessor especial no Programa Fome Zero. Deu-me todo apoio.
João mantinha estreito vínculo com o MST, fortalecido por sua amizade pessoal com João Pedro Stédile, cuja casa frequentava. Também mantinha contatos frequentes com o Levante Popular da Juventude.
Participava dos grupos de oração que acompanho há mais de 40 anos. Embora tenha passado a residir em Goiânia, manteve-se vinculado aos grupos de Belo Horizonte, e sempre se fazia presente em nossos dois retiros anuais. O último presencial, que congregou os grupos de MG, SP e RJ, foi em junho de 2019, em Minas, quando João fez uma brilhante exposição sobre o Sínodo da Amazônia.
Embora fosse sacerdote, ele preferia não presidir as celebrações litúrgicas nos retiros. Fazia questão que eu, que não sou padre, estivesse à frente.
Viajamos juntos a Malta, em 1988. Fui conhecer a terra e a família dele. João se desdobrou para que eu aproveitasse a viagem ao máximo. Levou-me a proferir palestra na universidade, a visitar e dialogar com o presidente do país, a conhecer os locais citados nas cartas de São Paulo.
Nos anos em que morou na capital paulista, João passou a assessorar, em níveis local e nacional, a Renovação Cristã, movimento que dá continuidade à antiga Ação Católica. A principal parceira de sua agenda pastoral, progressista, era Lília do Amaral Azevedo que, como ele, era poliglota.
A motivação da fé libertadora, inspirou a dupla a criar, em 1982, o Grupo Solidário São Domingos, destinado a se solidarizar com povos e movimentos que lutam contra qualquer tipo de colonialismo ou dominação. No Brasil, apoiou a luta pela reforma agrária e colaborou com a CPT (Comissão Pastoral da Terra), sobretudo nos conflitos fundiários ocorridos no Paraná e no sul do Pará.
João se fez presente em Xambioá, na região de Conceição do Araguaia, quando latifundiários e o governo perseguiram os padres franceses Aristides Camio e François
Gouriou. Presos de 1981 a 1983, foram em seguida expulsos do país, acusados de incitar invasões. O Exército ocupou a cidade e designou um capelão militar para assumir a paróquia. Por considerar tal atitude uma afronta, a diocese remeteu frei João Xerri para Xambioá. Lá, ele permaneceu algum tempo, apesar dos riscos e das ameaças. O capelão militar na paróquia, e ele em outra capela. Na época, Lília Azevedo publicou uma coletânea de cartas do padre Aristides, com o título muito significativo: “O importante é o povo”.
Em 1983, o Grupo Solidário São Domingos iniciou sua colaboração com o povo da África do Sul na luta contra o “apartheid”. Apoiou também a luta pela liberdade dos povos da América Central e, particularmente, do Haiti. Acompanhou, de modo especial, a luta dos zapatistas em Chiapas, México, que João visitou, em 1998, em companhia de Lília e Dom Tomás Balduíno. Entre as personalidades amigas de João se destacam Desmond Tutu e Xanana Gusmão, líder da libertação do Timor-Leste e primeiro presidente do país livre.
Desde 1993, João passou a colaborar com o povo de Timor-Leste por sua libertação da Indonésia, ocorrida em 2002, através do projeto “Clamor por Timor”. E hospedou, em nosso convento de São Paulo, no bairro de Perdizes, um dos principais líderes revolucionários, José Ramos-Horta, futuro chanceler do país libertado.
Com o Grupo Solidário, João assumiu, desde 1993, o lançamento anual, no Brasil, da Agenda Latino-Americana, editada em diversos idiomas. Produzida por Dom Pedro Casaldáliga e pelo padre José Maria Vigil, a agenda apresenta fatos, datas e nomes que se destacaram na história de libertação do nosso continente.
João me acompanhou em viagens a Nicarágua e Cuba. Foi Promotor de Justiça e Paz da Ordem Dominicana na América Latina e Caribe, entre 1986 a 1992. E, de 1986 a 1994, Promotor de Justiça e Paz dos frades dominicanos no Cone Sul. Convidado a assumir a missão de Promotor Geral de Justiça e Paz e delegado permanente da Ordem Dominicana junto à ONU, tornou-se membro do Conselho Geral da Ordem e presidente da Conferência Interprovincial da América Latina e Caribe – CIDALC. Para essa tarefa, viveu em Roma entre 2001 e 2008, tendo retornado a Malta e, após algum tempo, voltado novamente ao Brasil. Nos últimos anos, integrou a Comissão de Justiça e Paz da Família Dominicana no Brasil, e assessorou a CPT.
João levou mundo afora o filme “Batismo de sangue”, baseado em meu livro de mesmo nome. Em Lima, em 2007, exibiu-o na assembleia das superioras das irmãs dominicanas de toda a América Latina e Caribe, e aos superiores dos frades dominicanos da mesma região. E escreveu ao diretor do filme, Helvécio Ratton: “Para mim, um dos grandes valores do filme é que conta um fato, sem justificá-lo nem fazer dele um paradigma. Não é um filme de bandidos e mocinhos, de santos e de pecadores. É a narrativa do fato em sua plena verdade, sem ser apologética. (…) Outra coisa interessante, e que tem um valor universal, é o tratamento dado à questão da tortura, da abominação da tortura. Importante também a meu ver o modo como trata a delação sob tortura: esse é um tabu que é preciso mesmo enfrentar.”
Frei João fará falta. Já não mais veremos seu sorriso contido, nem ouviremos suas interjeições abreviadas: “Hahnn? Heeh?”, ao se mostrar perplexo diante de qualquer fato que lhe era narrado, ainda que prosaico. Não o veremos caminhar como um marujo no convés, o corpo oscilando levemente como se os ombros lhe pesassem. Nem o veremos levantar a voz rouca, possante, e a mão direita, quando uma situação suscitava-lhe veemente indignação. No entanto, guardaremos na memória o seu legado de militante de todas as causas justas, libertárias, fosse ela a luta operária na periferia de São Paulo, simbolizada por Santo Dias, de cuja família ele se fez amigo, fosse o direito sempre negado aos palestinos de viverem em um Estado livre e soberano.
Deus o tenha em Seu infinito amor.
Frei Betto é frade dominicano e escritor, autor de “Parábolas de Jesus – ética e valores universais” (Vozes), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org