Magali do Nascimento Cunha participou do Grupo de Referência da Peregrinação de Justiça e Paz do Conselho Mundial de Igrejas (GRPJP) de 27 de fevereiro a 7 de março de 2019. Veja relato, com fotos dos eventos nos quais ela participou e levou a sua contribuição.
Relato sobre minha participação na reunião do Grupo de Referência da Peregrinação de Justiça e
Paz do Conselho Mundial de Igrejas (GRPJP), 27 de fevereiro a 7 de março de 2019
Magali do Nascimento Cunha
Mandato
O GRPJP foi formado pela secretaria-geral do Conselho Mundial de Igrejas após a decisão da X Assembleia do CMI de responder aos desafios lançados pela Década de Superação da Violência (2001-2010), por meio da iniciativa da Peregrinação de Justiça e Paz – um convite às igrejas, a cristãs/cristãos e a todas as pessoas de boa vontade. O desafio foi assumido pelo próprio CMI em sua reunião de planejamento de ações até
- O convite do CMI para a Peregrinação de Justiça e Paz tem uma mensagem importante: as igrejas estão numa jornada neste mundo, a caminho de outro mundo possível, como diz a Bíblia, de “um novo céu e uma nova terra” (Apocalipse). Vivem e trabalham por isso. A preposição “de” faz toda a diferença: não uma peregrinação pela justiça e pela paz, mas “de” justiça e paz. Significa que as igrejas precisam seguir no caminho por outro mundo possível, testemunhando e trabalhando a justiça com paz. Não mais uma forma de ativismo cristão e sim um compromisso com o Deus do “shalom”. Uma jornada “de” justiça e paz que os cristãos mesmos devem testemunhar, dentro de suas comunidades religiosas, entre elas e com as outras religiões, contagiando o mundo.
O GRPJP foi criado em 2014, com 25 pessoas representando diferentes igrejas-membro do CMI e regiões do mundo, e com três observadores: um da Igreja Católica Romana, um do Judaísmo e um do Islamismo. Fui convidada para participar como metodista, brasileira e latino-americana. O grupo iniciou suas atividades
em 2015 para assessorar o CMI em suas atividades e propor ações em torno a Peregrinação de Justiça e Paz. A primeira reunião anual aconteceu no Instituto Bossey (Suíça), em fevereiro de 2015, tendo decidido que encontros do grupo só fariam sentido se fossem realizados como uma peregrinação, ou seja, fora dos espaços do CMI, caminhando com igrejas e contextos que demandam a promoção da paz com justiça. Decidiu-se pela peregrinação nas regiões do mundo e com atenção àquelas definidas como prioridade de ação do CMI por viverem situações-limite. Por isso em 2016 a reunião anual aconteceu no mês de fevereiro na região do Oriente Médio, onde é realizado o Programa Ecumênico de Acompanhamento à Palestina e a Israel, com peregrinação pelas cidades de Jerusalém e Belém.
Em fevereiro de 2017, o grupo dirigiu-se à África, baseando-se na Nigéria, sem esquecer que outros dois países estão na lista das prioridades: Sudão do Sul e República Democrática do Congo. Duas cidades receberam o grupo na Nigéria: a capital Abuja e Kaduna, na região centro-norte. O organizador da visita foi o pastor batista, secretário-geral do Conselho Cristão da Nigéria Rev. Wishishi I. Yusuf.
Em fevereiro de 2018 o trabalho do GR foi realizado na Colômbia, com foco na região da América Latina. Seguindo a orientação da reunião de 2017, foram iniciadas as atividades de Visitas de Grupos de Peregrinação (VGP) com três locais da Colômbia sendo visitados em período prévio à reunião, momento de convivência, de ouvir e de registrar solidariedade às pessoas das igrejas e dos movimentos pela paz na Colômbia. Por conta de compromissos pessoais em São Bernardo do Campo, não consegui participar deste momento prévio, o que muito lamentei. Durante a reunião, houve encontros com líderes do governo colombiano, ex-combatentes dos grupos de guerrilha, com vítimas dos conflitos armados e de violência de gênero, com líderes religiosos, com a equipe da Conferência de Bispos Católicos da América Latina (CELAM) e representares da ACT Aliança e lideranças das ONGs JUSTAPAZ e GEMPAZ. A organizadora da visita foi a pastora presbiteriana, presidente do CMI para a América Latina, Glória Ulloa Alvorado.
Em fevereiro e março de 2019 a reunião da GR foi direcionada para a Ásia, cumprindo a meta de realizar reuniões em todos os continentes até a próxima Assembleia do CMI. O local da reunião foi a cidade de Chiang-Mei, na Tailândia, e os membros do GR foram distribuídos em quatro VGPs pelo continente: Índia,
Mianmar, Paquistão, Bangladesh, Fronteira de Mianmar com a Tailândia, Indonésia. Eu fui escalada para a visita à Índia, Nova Delhi, com foco na violência de racismo e de gênero (situação dos Dalits). O organizador da reunião foi a Conferência de Igrejas Cristãs da Ásia, cujo secretário-geral é o indiano da Igreja (Ortodoxa) Síria Mar Thoma (da Índia) Mathews George Chunakara.
As reuniões tornaram-se, assim, oportunidade de as igrejas e regiões irmãs representadas no GRPJP expressarem solidariedade diante das situações-limite de falta de paz e injustiça dos locais visitados, aprenderem sobre a realidade em questão e as práticas realizadas pelos grupos locais, contribuírem com o compartilhamento para outros grupos, em busca de apoios e outras ações concretas, estudarem as ações do CMI e das igrejas-membro no enfrentamento dessa realidade e de outras.
VGP – Índia
De 27 de fevereiro a 2 de março visitei, juntamente com outros quatro membros do GRPJP, a cidade de Nova Delhi, Índia, para conhecer a realidade do sistema de castas e os desafios da população dalit, em especial das mulheres dalits. Fui solicitada pelo staff do CMI a ser a líder do grupo nesta visita, o que implicava em fazer a diplomacia com os contatos locais em nome do CMI, explicar-lhes o sentido do nosso trabalho e coordenar alguns momentos de reuniões.
Na nossa visita, seguimos a orientação metodológica e teológica da PJP: via negativa – visitar as feridas, via positiva – celebrar os dons, via transformativa – transformando as injustiças.
Visita às feridas
Nos três dias de visitas, dialogamos com os seguintes grupos e organizações em Nova Delhi: Fórum dos Direitos dos Dalits da Ásia, Movimento Nacional dos
Dalits pela Justiça, Movimento pelos Direitos Econômicos Dalits e Campanha Nacional sobre os Direitos Humanos Dalit, Safai Karmachari Andolan SKA – Movimento pela extinção da limpeza manual de latrinas e esgoto por
Dalits, Sociedade da Irmandade (Cristã) de Délhi/Escola Deenbandhu – Projeto com Crianças Dalits, Sociedade Indiana (Anglicana) para a Promoção do Conhecimento Cristão, Solidariedade com os Povos Dalits (DSP), participação na reunião do Comitê Executivo do Conselho Nacional de Igrejas na Índia (NCCI) e interação com a Igreja do Norte da Índia (CNI).
Aprendemos sobre os milhares de anos de exclusão, exploração e tratamento desumano para as pessoas “sem casta” – os Dalits na Índia – com base em seu trabalho e descendência. O sistema de castas, que hierarquiza tipos de pessoas, estabeleceu um severo e forte estigma sobre os Dalits, aqueles que, segundo o sistema, não têm casta, por isso, foram, historicamente, forçados a fazer
trabalhos braçais, especialmente aqueles relacionados à sujeira, como limpeza, curtição de couro, entre outros. Por estas razões, os Dalits são considerados impuros pelo sistema e não devem ser tocados, devendo relacionar-se intimamente apenas com aqueles de seu grupo social.
Foi intensamente tocante, provocando lágrimas nos participantes, ouvir os relatos das mulheres e homens Dalits destinados a uma vida desumana: realizar a limpeza manual de latrinas nas periferias cidades e no interior do país e de esgoto nas áreas centrais das grandes cidades. As latrinas são
limpas por mulheres desde a adolescência, forçadas a carregar os dejetos em suas cabeças por meio de cestas até locais abertos de descarregamento. Os esgotos são manualmente
limpos por homens desde a adolescência, que entram nos espaços subterrâneos sem qualquer equipamento de segurança.
A limpeza manual de latrinas e esgotos é proibida por lei na Índia mas a força do sistema de castas faz com que ainda seja praticada e provoque indiferença nas autoridades que deveriam fiscalizar a prática ilegal. Ainda há 1.260.000 Dalits praticando a limpeza manual na Índia, com a geração de mais de 1.000 mortes por ano em todo o país devido às doenças adquiridas e à falta de segurança no trabalho. As organizações pelos direitos Dalits têm atuado intensamente na denúncia e na reivindicação da aplicação da lei.
Estes vídeos oferecem uma noção bem clara do que significa este trabalho indigno e humilhante: https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=QKvyB-EWWQg; https://www.youtube.com/watch?v=iahtzxQt2og.
De fato, o sistema de castas foi extinto constitucionalmente na Índia nos anos 1990, mas apesar disto continua arraigado na cultura de tal forma que as práticas discriminatórias milenares são mantidas. Consequências disto, além do caso das péssimas condições de trabalho desumano, têm sido: o alto índice de abuso sexual e estupro de mulheres, justificados por grupos como “ensino” de uma lição aos Dalits que resistem à opressão; os assassinatos de cônjuges que realizaram casamento misto (Dalits com pessoas de
outras castas), justificados como crimes pela honra da família; os assassinatos praticados por “milícias leais ao sistema de castas” contra Dalits que resistem à opressão; a negação das cotas (previstas por lei para superar a opressão histórica) e a discriminação de cristãos Dalits, com muitos casos de discriminação e violência em universidades. São relatadas anualmente 40.000 atrocidades contra Dalits, sendo 2.500 deles casos de estupro (entre aqueles registrados).
A celebração dos dons
Celebramos com os grupos visitados o fato de o sistema de castas ter sido abolido constitucionalmente em 1989 e também a elaboração do Ato de Prevenção de Atrocidades. Em 1995 foram enquadradas as regras sobre atrocidades, o que estabeleceu, oficialmente, condições de inclusão social dos Dalits. Ainda que a cultura das castas esteja tão arraigada na realidade da Índia, estas leis dão respaldo para as ações por justiça e paz para Dalits.
O Safai Karmachari Andolan SKA – Movimento pela extinção da limpeza manual de latrinas e esgoto por Dalits tem conseguido desenvolver ferramentas mecanizadas para trabalhadores nas cidades a fim de lhes permitir realizar seu trabalho com segurança, com o apoio de parceiros internacionais. O movimento também tem tornado possível a reabilitação de vários limpadores para profissões mais dignas, como a condução dos “rickshaws” a bateria (transporte público popular).
Há várias organizações envolvidas no empoderamento das mulheres Dalits, ajudando-as na superação dos abusos sexuais e na busca de trabalho digno.Muitas crianças Dalits que não teriam acessão à educação têm sido alcançadas por instituições como a Escola Deenabandhu, da Sociedade da Irmandade de Delhi. É crescente o número de jovens Dalits que têm acesso a universidades e conseguem bons empregos. Aprendemos e celebramos o papel especial do movimento ecumênico na Índia e do CMI em processos de capacitação da juventude Dalit e formação de lideranças.
A Teologia (da Libertação) Dalit tem contribuído para guiar espiritual e teologicamente a população cristã Dalit local, nacional e internacionalmente e tem-se feito conhecer para o poder público.
Para alcançar apoio internacional e solidariedade, as organizações estão empreendendo esforços para encontrar situações semelhantes em outros países de todos os continentes, onde a discriminação baseada no trabalho e na descendência é praticada. Foi citado o caso do Brasil e a
situação da população negra e parcerias realizadas.
Transformando as injustiças
A nossa VPG indicou que a PJP pode fortalecer os esforços das igrejas indianas para derrubar o sistema de castas e ajudar a restaurar a dignidade entre os Dalits que são marginalizados e subjugados no contexto atual. A PJP pode inspirar as igrejas a tomar novas ações e pode desenvolver novas parcerias. As igrejas devem contribuir para campanhas de mudança (de mentalidade) dentro e fora da Índia, e precisam ir além dos grupos Dalits.
A convivência nas periferias de Nova Delhi, onde vivem os Dalits, e a expressão de solidariedade que pudemos realizar afetou-me de forma muito intensa. Retornei para casa com um misto de indignação e de esperança por ter visto tantas ações para a mudança daquela realidade tão indigna, inumana. De forma alguma sou a mesma pessoa que saiu de casa em 26 de fevereiro. Jesus ganhou em mim um rosto Dalit.
A reunião do GRPJP
Durante a reunião plena do GRPJP, na cidade de Chiang Mai, na Tailândia, de 3 a 7 de março, pudemos ouvir os relatos de todas as VGP. Situações de refugiados, de pessoas vivendo em campos nos limites da sobrevivência, falta de terra para viver e trabalhar e casos de intolerância religiosa (contra cristãos em Bangladesh e na Índia e contra islâmicos em Mianmar) foram bastante destacadas, o que mostra como a Ásia hoje tem intensas expressões de falta de paz e justiça. O grupo que visitou o Paquistão não pode participar da reunião plena pois ficou retido, depois que o espaço aéreo foi fechado diante do conflito bélico iminente entre a Índia e aquele país, provocado naqueles dias. Eu mesma sofri atrasos na viagem de ida para a Índia por conta desta situação. Ainda assim, o grupo pode apresentar seu relato por meio de transmissão via Skype.
Além de tratarmos dos temas que podem ser aprofundados no trabalho do CMI e das igrejas na região, durante a reunião plena, trabalhamos em subgrupos para redigir uma reflexão teológica inspiradora de ações por justiça e paz na Ásia. Participei do grupo “Racismo e Discriminação de Cor” e fui a relatora. Estou anexado o resultado da reflexão do grupo. Os demais grupos trataram de “Terra e
Deslocamento”, “Justiça de Gênero” e “Verdade e Trauma”.
Próximos passos
A próxima reunião do GRPJP acontecerá na região das Ilhas do Pacífico, em janeiro de 2020. Nessa reunião já trabalharemos em um
relatório para a Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas, a ser realizada em 2021, na Alemanha.
A experiência das VGP não está restrita ao trabalho do GRPJP. Mantem-se a proposta de organização de Grupos de Peregrinação a partir do convite de igrejas-membros, para ampliar esta experiência e não ficar restrita ao GRPJP, como preparação para Assembleia de 2021. Nesse sentido, igrejas-membro poderão pedir ao CMI para receberem Grupos de Peregrinação às suas igrejas e regiões. Quem sabe não temos um grupo ou grupos no Brasil?
Em Cristo, Março de 2019