Ao longo de todo o Advento e também agora no Natal, vimos refletindo sobre a misericórdia e procurando unir-nos à convocação do Papa Francisco para toda a Igreja com o Ano da misericórdia. Encontramo-nos agora às portas de 2016. E desejamos fazer da misericórdia nosso projeto, nossa resolução de ano novo.
Já vimos que a misericórdia não é apenas emoção frente ao sofrimento alheio. Isto é o movimento que a desencadeia, certamente, mas não é autêntica misericórdia se não se faz práxis e ética. Tem que converter-se rapidamente em fatos concretos e transformadores, geradores de justiça, paz, perdão e alegria.
No entanto, parece-nos também que o conceito e a categoria de misericórdia devem ter uma tradução cultural, a fim de poder ser melhor entendida e consequentemente praticada em nossos tempos secularizados e plurais. Foi o que aconteceu também com o termo “caridade”, que se diz hoje muito mais como “amor”, entendendo esse amor como uma sensibilidade à vulnerabilidade do outro, do diferente. Essa concepção de caridade é hermeneuticamente mais compreensível quando uma mensagem deseja ser bem recebida pelos que hoje escutam a Igreja, mas não manejam sua linguagem com intimidade e conhecimento.
Ainda que ultrapasse a justiça, a misericórdia não existe sem ela. Portanto, tem que sair do âmbito da pura subjetividade e lançar-se para o espaço público, provocando impactos políticos de transformação da realidade. Não se pode conceber uma misericórdia que exista desconectada dos direitos fundamentais da pessoa humana, da comunidade humana como um todo. A hermenêutica da palavra o exige, a fim de que possa dar os frutos que o mundo deseja e espera.
A conversão à misericórdia a que nos chama o Papa Francisco tem que ter diante dos olhos a materialidade da vida, das necessidades concretas do outro, do semelhante, do próximo. Tem que impactar sobre o comer e o vestir, sobre a moradia como direito de todos, assim como o acesso geral à saúde. Terá que ver com segurança no viver, sem medo que a violência e a morte interrompam a existência a cada passo e em cada esquina. Dirá respeito à qualidade afetiva de uma existência que não se exime de consolar os tristes e aflitos através do dom da consolação e da esperança. Exige abrir as portas das casas para acolher os estrangeiros que chegam e necessitam um lugar para ficar, dormir durante a noite, enquanto buscam trabalho em um país que não é o seu. Trata-se, enfim, de reconstruir a dignidade de vidas inteiras afetadas pela falta de respeito e o descarte subjetivo, coletivo e sobretudo tristemente real.
Assim, a misericórdia tem que abandonar a esfera do privado e chegar igualmente à esfera pública, influir sobre a polis e ganhar dimensões políticas. E não se trata aqui de uma política meramente partidária, mas de política em sentido amplo que, ainda segundo Francisco de Roma, é uma das formas mais elevadas da caridade, uma vez que busca o bem comum.
O amor que vem de Deus, inspira e converte os corações, enchendo-os da mesma misericórdia que enchia e se derramava do coração de Jesus. E o que este amor faz é suscitar uma mística de olhos abertos, que olha em volta, vê, para e se compadece. E busca atender as distintas situações onde a misericórdia se faz urgente e necessária. A isso está chamada a Igreja de Cristo: a ser no mundo uma das forças vivas onde pulsa o dinamismo do amor suscitado pelo Espírito do próprio Jesus Cristo. É um amor que sabe que ainda que as urgências materiais sejam prioritárias no atendimento misericordioso, uma vez que sem isso não há vida possível, tampouco tudo não se resume à materialidade para que haja plenitude de vida. Nem só de pão vive o homem nem a mulher. Ambos necessitam, além de alimento, moradia e vestuário, de tranquilidade, cuidado, liberdade, dignidade, reconhecimento. Em suma, justiça e paz.
Uma cultura da misericórdia, portanto, tem que estar sempre em movimento, tem que ser mais e mais dinâmica. Inclusive porque a história não se detém e vão aparecendo novas situações de necessidade, pobreza e crise. Se não há um olhar misericordioso, inspirado e movido pelo amor, essas situações podem não ser percebidas. Como por exemplo, a depressão que ataca tanta gente a ponto de ser considerada a doença do século. Ou a solidão abrumadora, que faz com que anciãos morram em casa e ninguém se dê conta, a não ser quando, dias depois, o cadáver entra em decomposição e chama a atenção pelo cheiro. Tudo isso revela uma sociedade de exclusão, que glorifica o consumo e a produtividade, não olhando e sobretudo não cuidando dos aspectos mais dolorosos e, por isso, mais escondidos da vida.
No ano que se inicia, somos chamados a voltar-nos para o sofrimento dos mais fracos, mas também para os excessos dos mais ricos e do consumismo capitalista enquanto sistema. Assim também somos convocados a combater a exploração indiscriminada e impenitente dos recursos do planeta, que está a ponto de lançar toda a vida em um abismo sem retorno.
Assim, estaremos colaborando para uma ética global da compaixão e da misericórdia, onde a autoridade não é dos que mandam, ou dos governos que detêm poder, mas dos que sofrem de forma injusta e não merecida. Deles provém a verdadeira autoridade, pois são as vítimas de todas as violências e todas as exclusões e, portanto, os destinatários prioritários de toda a misericórdia. Que o compromisso com eles possa ser nossa resolução maior para 2016.
Feliz Ano Novo para todos!
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão”(Edusc)