Criança, meus pais me ensinavam que era feio espiar os outros pelo buraco da fechadura. Na época, quase todas as fechaduras eram vazadas. Há em Roma uma famosa fechadura, do portão do priorado dos Cavaleiros de Malta, no Aventino, vizinho à casa geral da Ordem Dominicana, da qual se enxerga a cúpula da Basílica de São Pedro. Os turistas fazem fila.
Espiar alguém pela fechadura é invadir-lhe a privacidade. Algo saudável na cultura animal (e não só na dos humanos) é a separação entre o público e o privado. Quem caminha pela floresta raramente encontra um pássaro morto no chão. Muitos animais são pudicos. Abrigam-se em tocas, ninhos, cavernas e fendas.
A pós-ética da sociedade consumista rompeu o limite entre o público e o privado. Que o digam os paparazzi. Uma pessoa famosa já não tem direito de privacidade. O público quer saber também o que ela come, com quem faz sexo, quanto possui na conta bancária. O astro é devorado por seu fã clube. O assassinato de John Lennon foi um ato de canibalismo. E a autofagia induz tantos artistas à morte, como Michael Jackson e Amy Winehouse. Um artista que morre de overdose é porque já não suporta a realidade em que vive. Sente-se impelido a uma viagem sem volta…
Li em reportagem que Paul McCartney se encontrava no Hyde Park passeando com o filho pequeno. Fãs se aproximaram ávidos por fotos e autógrafos. Ele disse que se encontrava em momento privado e, assim, livrou-se do assédio. Contou também que não suporta o trânsito de Paris. Prefere andar de metrô. A repórter indagou: “Mas não o reconhecem?” “Sim – disse o ex-Beatles -, mas tento me disfarçar com boné e óculos escuros, e ninguém acredita que sou eu”.
O mais notório exemplo dessa síndrome do voyeurismo de fechadura é o Big Brother. Em nenhum país como no Brasil faz tanto sucesso o programa criado na Holanda por John de Mol Jr., em 1999, inspirado no célebre romance “1984”, de George Orwell. No Brasil, o programa está agora em sua 22ª edição. Na estreia, a 17/1, obteve 30,2 pontos de pico de audiência. Cada ponto representa 76.577 televisores ligados na Grande São Paulo. Faustão na Band, que estreou na mesma noite, obteve 9,5.
A fórmula do Big Brother se resume em derrubar o muro que separa o público do privado. Milhões de espectadores abrem as janelas de seus dispositivos eletrônicos e acompanham, em tempo real, a intimidade de uma tribo de canibais captada por onze câmeras. Canibais porque, ali dentro, todos sabem que apenas um sairá vitorioso e embolsará R$ 1,5 milhão. (Calcula-se que o programa renderá R$ 700 milhões à Rede Globo). Qualquer vacilo é motivo para decretar a morte do outro. E isso reforçado por uma multitudinária torcida que, à distância, como os deuses do Olimpo, decidem os destinos dos concorrentes.
É um jogo. Como em todo jogo, há vencidos e vencedores. Foi exatamente isso que perceberam os gregos antigos e, séculos depois, a psicologia captou: no jogo, no esporte, a pulsão humana encontra o seu espaço de catarse. E não faz do adversário inimigo.
O Big Brother, contudo, não se compara ao teatro grego. E dissemina a cultura do buraco da fechadura, favorecida amplamente pelas redes digitais, nas quais predomina o narcisismo. Nesse jogo de espelhos, o usuário expõe, para gáudio ou inveja de seus parceiros de nicho, o que comeu no almoço, a notícia de jornal que lhe despertou mais atenção, o livro que lê, até mesmo fotos e mensagens privadas trocadas com amigos íntimos. Caiu na rede é peixe…
Se uma pessoa posta no Instagram, no Whatsapp, Facebook ou em qualquer outro canal que cortou superficialmente a mão ao usar a faca de cozinha, imediatamente o receptor se faz retransmissor, e o que foi dito a um ressoa em milhares. Como quem conta um conto aumenta um ponto, não será surpresa se, dia seguinte, houver quem diga que fulano teve a mão amputada…
A cultura do buraco da fechadura ganhou tal proporção que, se um parceiro de nicho deixa de dar notícias, logo sofre uma torrente de cobranças. “Está doente?”; “Por que não tem postado?; “O que é feito de sua vida?”
Avesso como sou à invasão de privacidade, bem sei como é isso. O direito de se resguardar virou quase uma desfeita para com os amigos. Agora o axioma não é mais “penso, logo existo”. É “existo, porque me exponho”. Como diria Chacrinha, multidões erguem as mãos na expectativa de que lhes atirem bacalhau…
Frei Betto é escritor, autor de “Diário de quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org