por Angelica Tostes
A segunda semana do nosso curso foi marcada pela presença de Lídia Maria de Lima, teóloga feminista negra de Koinonia Presença Ecumênica, que nos proporcionou uma leitura popular da Bíblia com o tema “Bíblia: Resistência diante da violência e luta pelo direito à vida”. Com muita contação de histórias e compartilhamento de experiências, pudemos aprender a ler a Bíblia com nossos corpos, entendendo a importância de uma perspectiva que leve em conta a vivência das mulheres e outras minorias.
Lídia nos alertou que fomos condicionadas a olhar para a narrativa sagrada como um livro que nos conta a história da salvação a partir dos homens e pelos homens, deixando as mulheres como coadjuvantes. No entanto, ela nos mostrou que é possível olhar para os textos bíblicos enxergando pessoas reais, com cheiro, desejo, corpo e histórias, e que essa abordagem nos permite ter uma relação mais sagrada com a Bíblia, reconectando-nos com o que há de mais divino. A leitura popular da Bíblia, portanto, é uma ferramenta importante na luta pela resistência à violência e pela defesa dos direitos à vida, especialmente para as mulheres e outras minorias que são frequentemente invisibilizadas nas interpretações tradicionais. Tivemos diversos exercícios e discussões em grupos para pensarmos com nossos corpos o texto bíblico.
Após uma cuidadosa reflexão bíblica, tivemos a valiosa oportunidade de ampliar nossos conhecimentos com a advogada Claudia Luna, que também é a Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/SP. Em sua apresentação, Claudia abordou várias facetas da violência contra as mulheres, desde o período da colonização até os dias atuais. Ela compartilhou conosco dados e informações que revelam uma história marcada por injustiças de gênero interseccionando com a justiça racial.
O tema que Claudia nos trouxe foi Corpo e Território: a questão do trabalho para a mulher negra e periférica. Ela nos contou sobre sua experiência como advogada e apresentou casos que ela já atendeu sobre essa temática. Claudia nos mostrou como as mulheres negras e periféricas são frequentemente submetidas a condições de trabalho precárias e abusivas, além de enfrentarem discriminação em todos os aspectos de suas vidas. Foi uma apresentação extremamente esclarecedora e comovente, que nos permitiu entender a gravidade da situação das mulheres negras e periféricas em nosso país. A partir disso, pudemos refletir sobre as ações que podemos tomar para combater essa realidade e promover a igualdade de gênero e racial em nossa sociedade. É possível conferir mais sobre essa discussão na Live que Claudia fez para o CESEEP no Youtube, Corpo-território: Trabalho, Raça e Racismo Ambiental:
Na manhã seguinte, tivemos o privilégio de contar com a experiência das cursistas vindas de Cuba, Yohana Lezcano Lavandera e Camila Guerrero Calcines, do Centro Memorial Martin Luther King de Havana. Elas compartilharam conosco os impactos e desafios na sociedade cubana a partir do Código das Famílias. Esse código é um ensaio para que toda a sociedade reproduza relações de poder dignas e afetuosas, baseadas em direitos e responsabilidades, comprometidas com o bem-estar pessoal e comum. Ele nos convoca a irmos além, como um povo responsável por nossa própria libertação, apostando no respeito à diversidade. A nova lei propõe modelos mais inclusivos, justos, cooperativos, dialógicos e solidários.
A roda de conversa conduzida por Daiane Zito abordou uma questão sensível e urgente: o corpo da mulher no espaço das igrejas. Com dinâmicas e partilhas, os participantes puderam ouvir e perceber como a igreja tem lidado com esse corpo-território, e como as mulheres têm se posicionado e resistido a opressões históricas dentro desse espaço.
Daiane trouxe uma abordagem crítica e libertadora, evidenciando como a estrutura patriarcal da sociedade se manifesta dentro das igrejas, muitas vezes reforçando a ideia de que o corpo da mulher é impuro e pecaminoso. Através de reflexões e trocas, os participantes puderam compartilhar suas vivências e perceber como as questões de gênero, sexualidade e poder se entrelaçam no espaço religioso. Foi uma roda de muitas emoções, onde as participantes puderam relatar suas experiências dentro dos espaços religiosos, onde encontram acolhimento e também desafios de serem corpos femininos atuantes e ao mesmo tempo sem espaço de liderança. Um caminho a ser percorrido.
Renata Reis e Natália Blanco, da SOF – SempreViva Organização Feminista, trouxeram ao curso uma temática de grande relevância: a relação entre colonialidade e gênero, sob uma perspectiva decolonial do corpo. Através de diversas atividades em grupo, que consideravam a territorialidade do real e do imaginário, os participantes foram convidados a repensar suas concepções sobre seus próprios corpos, e sua relação com os territórios que habitam no presente. De maneira geral, a contribuição de Renata Reis e Natália Blanco foi fundamental para aprofundar a discussão sobre a relação entre colonialidade e gênero, sobretudo no que diz respeito às visões decoloniais do corpo. As atividades propostas permitiram que os participantes pudessem refletir sobre suas próprias experiências e percepções, e questionar as dinâmicas opressivas que ainda afetam suas vidas e seus corpos.
Durante a roda de conversa que abordou o tema “Corpo e território”, contamos com a presença de importantes representantes de pastorais que atuam junto a populações marginalizadas. Entre elas, tivemos a participação de Simone Oliveira, da Pastoral Afro, que trouxe reflexões importantes sobre a relação entre o corpo negro e o território, evidenciando como a estrutura racista da sociedade brasileira impõe limitações e opressões ao corpo negro em diversos contextos. Simone também relatou a importância de uma rede de pastorais para o enfrentamento do racismo. Nos falou sobre a história da Pastoral no Brasil e seus desafios quanto Igreja de rostos Negros. Sobre rostos negros e negras, nos colocou a importância de visibilizar as ações e pessoas que atuam dentro da Pastoral em várias frentes e regiões, pois a Pastoral Afro-Brasiliera é composta de diversas pessoas e na sua mariora mulheres. Também tivemos a contribuição de Ana Maria Alexandre e Sueli Souza, moradora em situação de rua, da Pastoral do Povo de Rua de SP, que trouxe reflexões importantes sobre os atravessamentos de corpos marginalizados em territórios em disputa. Através de relatos de suas experiências no trabalho junto a populações em situação de rua, Ana Maria evidenciou como o corpo e o território se entrelaçam de forma complexa, e como a luta por direitos e dignidade para esses corpos passa pela disputa por espaços públicos e pelo reconhecimento da cidadania plena. Sueli, nos mostrou a violência da invisibilidade da mulher na rua e a dureza da própria sobrevivência, e relatou a importância de espaços como o da Casa de Oração do Povo da Rua, como lugar de acolhida e do resgate da dignidade entre pessoas solidárias.
Por fim, concluímos o nosso curso com uma celebração brasileira, que contou com pratos típicos, muita música e dança. Foi um momento de descontração e integração entre os participantes, que puderam compartilhar experiências e fortalecer laços.
No dia seguinte, realizamos um momento de sistematização das experiências e avaliação do curso, em que cada um pôde expressar suas impressões e opiniões sobre o que foi vivenciado ao longo dos dias de formação. Foi uma oportunidade de reflexão e aprendizado coletivo, que contribuiu para aprimorar a organização de futuros cursos e atividades.
Em suma, os dias que passamos juntos foram muito ricos e gratificantes, deixando uma marca profunda na memória de todos os participantes. Aprendemos sobre a importância de lutar pela libertação de nossos corpos e territórios, livres da colonialidade, capitalismo, violências e exploração. Que possamos seguir em frente, com os ensinamentos e experiências compartilhados, na busca por uma sociedade mais justa e igualitária.