Essa semana começa por uma coincidência feliz. Nessa segunda-feira, 10, se celebra o ano novo judaico (começa o ano 5778). No dia seguinte, terça-feira, é a vez dos muçulmanos comemorarem o ano novo islâmico (1440 da Hégira). Duas religiões que têm a mesma fonte no patriarca Abraão e na revelação divina do Amor celebram a esperança de um tempo novo, em meio a conflitos que, desde muito tempo, dividem judeus e o mundo árabe.
Esse conflito não vem da fé. Ambas as religiões ensinam que Deus é Paz e quer a Paz. No Oriente Médio, a raiz das divisões é a interferência de governos europeus e norte-americanos. Durante muito tempo, os impérios do Ocidente jogam um povo contra outro e insuflam um espírito de guerra. Por trás da ingerência norte-americana naqueles países, como também no norte da África, estão interesses econômicos de controle do petróleo e a estratégia militar para dominar o mundo. A cada dia, aumenta o número de mortos na Palestina ocupada e nem se fala da Síria. A única preocupação dos Estados Unidos é garantir que os interesses norte-americanos saiam fortalecidos.
Setembro é o mês no qual a ONU tem sua assembleia geral. Mesmo sendo representativa dos governos, a assembleia geral é ainda a instância que une a humanidade em torno de um mundo mais justo. Nesse esforço de grande parte da sociedade civil, os ministros e representantes religiosos têm uma responsabilidade imensa. Muitas vezes, durante a história, as religiões forneceram pretextos para guerras. Muitos crimes se cometeram em nome de Deus. Em nossos tempos, é urgente que as religiões façam desabrochar, do tesouro de suas tradições, tudo o que pode ajudar a sociedade internacional a construir a paz.
Para enfrentar o desafio da construção da paz, as religiões devem aprofundar a própria imagem de Deus. Ele é fonte e principio da paz e não uma divindade intransigente e cruel que pede sacrifícios. Deus, se é mesmo Deus, não divide os seres humanos em crentes e descrentes, fiéis e infiéis. Esse tipo de deus mesquinho e interesseiro supõe organizações religiosas baseadas no dogmatismo e no autoritarismo de suas hierarquias. Ao adorar uma divindade assim, Igrejas ou religiões podem até falar de paz, mas, na prática, plantam sementes de intolerância e divisão entre as pessoas.
Graças a Deus, líderes espirituais como o Dalai Lama, o papa Francisco, o bispo Desmond Tutu e outros dão um testemunho de que Deus, se existe, só pode ser amor. No passado recente, papas como João XXIII, pastores como Martin-Luther King, o bispo Oscar Romero e alguns de nossos bispos e pastores contribuíram muito para se compreender a religião como instrumento de paz. Eles se inspiraram em suas tradições espirituais, para lutar contra o racismo, pregar a não violência e contribuir com relações internacionais pacíficas.
Infelizmente, nem sempre essa cultura religiosa da paz chega até as comunidades, paróquias e grupos de base. Atualmente, na América Latina e especificamente no Brasil, os grandes meios de comunicação de massa conseguiram espalhar uma cultura de intolerância raivosa e violenta que não permite a convivência com o diferente nem o diálogo.
Nessa realidade, é preciso aprendermos das culturas originárias do continente. De fato, as comunidades indígenas e grupos afrodescendentes têm nos conduzido à cultura da paz como cultura do bem-viver, isso é, a opção de conviver harmoniosamente e a partir de nossas diferenças culturais. Aos cristãos, São Paulo escreve: “Deus que, através de Jesus Cristo, reconciliou o mundo consigo, nos encarregou da palavra da reconciliação” (2 Cor 5, 19). Isso implica o trabalho de estabelecer a paz conosco mesmos, com os irmãos e irmãs diferentes de nós e com Deus, fonte de paz e amor do universo.
Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e biblista, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Tem 55 livros publicados, dos quais o mais recente é “Conversa com o evangelho de Marcos”. Belo Horizonte, Ed. Senso, 2018.