No domingo, 19 de março, completam-se dez anos do início do ministério do papa Francisco como bispo de Roma e primaz das Igrejas da comunhão católico-romana no mundo. Por todo o mundo circulam análises e comentários sobre o que, durante este tempo, o papa Francisco deu à Igreja e ao mundo como avanços necessários e também sobre as possíveis limitações e lacunas de sua atuação.
A realidade da Igreja Católica, em Roma e no mundo, pode ser olhada a partir de ângulos e critérios diversos. Sem dúvida, atualmente, na maioria dos ambientes católicos, respira-se uma liberdade e energia renovadora, que não havia em 2013, quando o papa Francisco assumiu. Desde os últimos 50 anos, finalmente, um papa voltou a dialogar com a humanidade, sem ser para falar sobretudo de moral sexual, ou reafirmar os velhos dogmas, ainda formulados na linguagem greco-romana. Além disso, nestes dez anos, nenhum teólogo ou teóloga foi condenado/a pelo Vaticano. E, pela primeira vez, desde séculos, grupos católicos, padres, bispos e até cardeais criticam abertamente o papa e não sofrem punição canônica.
O papa Francisco retoma e busca atualizar as principais intuições do Concílio Vaticano II que, antes, tinham sido rejeitadas pelo Vaticano e por amplos setores da hierarquia. Ele valoriza as dioceses, não mais como filiais de uma multinacional e sim como comunhão de Igrejas, cada qual com rosto próprio e o direito de se inserir na vida e cultura do povo. Para fortalecer a comunhão de todas, Francisco lança a proposta da Sinodalidade, como modo normal da Igreja ser. Redefine a missão como serviço ao mundo e a partir dos mais empobrecidos. São conquistas importantíssimas. No entanto, só se realizam a partir de uma mudança de paradigma. Supõem a superação do modelo de Igreja-Cristandade, no qual a Igreja é vista como hierarquia clerical, com prestígio e poder paralelo aos poderosos do mundo.
Na América Latina, durante séculos, conhecemos a Cristandade colonial. Ela legitimou e abençoou a conquista e a colonização. Atualmente, ainda mantém elementos de pensamento e ação de tipo colonial. Recoloca dentro da Igreja elementos teológicos e espirituais da religião dos sacerdotes e escribas do templo de Jerusalém no tempo de Jesus e os mistura com roupas e estruturas da antiga religião romana, que o Cristianismo substituiu.
A Cistandade reinterpreta os evangelhos a partir da ótica da religião que Jesus denunciou como hipócrita e desumana. Prega um Deus patriarcal, todo-poderoso, amigo dos que se submetem à sua lei e cruel para os que não lhe agradam. É um Deus que reis e rainhas podem se apresentar como representantes dele. No passado e até hoje, em nome dele, ainda há patriarcas e bispos que abençoam armas e defendem guerras.
A Cristandade substituiu o Cristo crucificado e nu pelo Cristo Rei.
Ao povo, reserva apenas devocionalismos barrocos e superficiais. Em recente viagem ao sul da Itália, ao ver como jovens seminaristas se vestiam, o papa Francisco falou: “Imagino que vocês se vistam assim para expressar a saudade de suas avós. No entanto, o povo espera de nós mais do que isso”.
Para essa Igreja-Cristandade, pastorais sociais e Campanha da Fraternidade podem ser adendos ou acréscimos às tarefas eclesiais. No entanto, não fazem parte da missão da Igreja que deve ser só religiosa e espiritualista. Claro que isso não impede que esses mesmos padres e bispos defendam governantes de direita que, com armas na mão, gritam: “Deus acima de tudo”. Mesmo grupos evangélicos e pentecostais sonham em ver suas Igrejas dominando o país e este ser governado, não pela Constituição e sim pela Bíblia, interpretada o mais possível, ao pé da letra, de acordo com os gostos de seus pastores.
Ao deixar claro que a meta de suas propostas é retomar o evangelho de Jesus, o papa Francisco revive no Vaticano de hoje a solidão que, em décadas como 1970, profetas como Helder Camara e Pedro Casaldáliga no Brasil, assim como Oscar Romero, em El Salvador, viviam em suas relações com os seus irmãos no episcopado e com o papa em Roma.
Uma Igreja que se olha como Cristandade não pode aceitar pastores assim. Como poderia aceitar as propostas do papa Francisco? Sinodalidade, sim, mas contanto que se garanta a Hierarquia.
No evangelho, Jesus afirmou: “Na casa do meu Pai, há muitas moradas” (Jo 14, 1). A diversidade entre conservadores e progressistas sempre existiu e pode enriquecer a catolicidade das Igrejas. O que não ajuda é quando o conservadorismo é pretexto e arma para impedir a profecia do evangelho. Nesse contexto, Jesus deixou claro: “Não adianta pôr remendo novo em roupa velha, ou vinho novo em odres velhos. Para vinho novo, os barris têm de ser novos” (Mc 2, 22).
Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e biblista, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. Tem 55 livros publicados, dos quais o mais recente é “Conversa com o evangelho de Marcos”. Belo Horizonte, Ed. Senso, 2018.