Se engana quem pensa que as igrejas evangélicas ou o cristianismo são um bloco homogêneo. Se engana também quem pensa que os pastores midiáticos representam essa fé tão plural e diversa com um discurso único. Podemos relembrar o binômio de ortodoxia – opinião/doutrina correta – e heresia – o que foge à norma estabelecida – resgatando que aqueles que dizem ter a “verdadeira fé”, punem, ridicularizam e menosprezam tudo aquilo que se difere desse centro de poder. A ortodoxia surge posteriormente às “heresias” e é marcada pela vontade de dominar e suprimir o diferente. Então, para fugir disso, apresento aqui uma outra via, que é o assumir a polidoxia – diversas opiniões dentro da fé cristã. A polidoxia, então, é a exposição das multiplicidades que cabem dentro do cristianismo, do não-saber místico de Deus e da relacionalidade, que é o conhecimento com base nas relações humanas e com a natureza.
Entre dessas tantas vozes, desses tantos conhecimentos baseados nas experiências do cotidiano, das lutas e da fé, nos deparamos com uma realidade que confronta o cristianismo: a violência contra a população LGBTQIA+ no Brasil. Nos últimos tempos, um vídeo de um pastor andou circulando nas redes sociais de famosos e famosas, gerou cerca repercussão nas mídias e expôs uma ferida profunda dentro das comunidades de fé: a LGBTfobia cordial.
Murilo Araújo, ativista negro LGBT+ e católico uma vez escreveu: “a LGBTfobia cordial é uma forma pior e mais nociva do que a violência explícita – porque como é implícita é mais difícil de perceber e se defender.” O pastor Bob Botelho da Iglesia Antigua de Las Américas, e fundador do Evangélicxs pela Diversidade, compartilha sua experiência quanto a fala como essas: “É nocivo e como discursos como esse geraram em mim tentativas de suicídio e uma depressão profunda por longos 5 anos, e de que como essa narrativa segue gerando sofrimento na vida de várias pessoas LGBTs que hoje chegam ao Evangélicxs Pela Diversidade”. E tais discursos vão de encontro às falácias da “cura gay” propagada por igrejas e pastores que impõe inúmeras violências aos que passam por esse processo.
A ativista Camila Mantovani, evangélica, bissexual e fundadora de Frente de Evangélicas pela Legalização do Aborto partilha suas vivências: “A prática da cura gay precisa ser repudiada e banida. Ela é tortura psicológica e fere a dignidade humana. Eu passei por essas sessões de tortura e se dependesse delas, eu não estaria viva hoje. Eu vivo pela graça de Deus que está sobre a minha vida (…)”É necessário ir além do diálogo, conhecer as diversas realidades é um passo para superar esses pensamentos que promovem morte. Camila Mantovani diz “muita gente que não tem ideia do que é a realidade de uma pessoa lgbt de fé e, assim, nos deslegitima. É quase como se fosse incompatível nossa sexualidade e nossa fé”.
A teóloga queer, doutora em Ciências da Religião e pastora da Igreja Comunidade Metropolitana Revda Ana Ester, avalia que “a sexualidade e espiritualidade são campos em disputa”! E essa disputa é também uma agenda política carregada das falácias acerca da “ideologia de gênero”, que articulam alas católicas e evangélicas, em um “ecumenismo (neo)conservador”, que dizem defender a “família, moral e bons costumes”, como aponta a pesquisadora Tabata Tesser: “São as agendas anti-gêneros “novas formas de totalitarismo” no século XXI baseadas em dogmas religiosos cristãos conservadores que visam a defesa da “lei natural” e provocam um retorno da Igreja Católica aliada a setores pentecostais a um regime de diferença sexual.”
Entretanto, até mesmo entre os evangélicos progressistas há resistências acerca do trabalho efetivo com igrejas nessa temática, sendo sempre adiada ou colocada em segundo plano. A Revda. Ana Ester pontua que esse tipo de progressismo teológico é seletivo, e não abrange a celebração e afirmação das identidades: “Costumo dizer que muitos dos “progressismos evangélicos” estão na página dois de uma proposta radicalmente inclusiva. (…) O avanço do diálogo deve permitir que esses corpos deixados de fora da mesa da comunhão, por tanto tempo, entrem nos templos não mais como corpos castrados, mas celebrando a experiência de uma fé integral”
Ocupar esse espaço da fé é crucial para cultivarmos uma espiritualidade plural. A Revda.Alexya Salvador, primeira mulher trans a ser nomeada reverenda na América Latina, deixa a letra “Ser ordenada clériga é a confirmação de que pessoas iguais a mim podem estar em todos os espaços da sociedade e da religião”! Devemos assumir a polidoxia, assumir as diversas cores do arco-íris, da vida, da natureza! Compreendendo que a diversidade é divina, e que escorre em amor dos braços de Deus. Encerro com uma bênção e prece escrita pela Revda. Alexya, que diz:
“Deus, hoje, mais do que nunca, nos faça pessoas construtoras da DIVERSIDADE (…) É nos teus múltiplos nomes, cores, cheiros e sabores, que hoje reafirmamos nosso compromisso com diversidade, sua maior manifestação. Amém, axé, namastê, motumbá, shalom …”
Angelica Tostes é Teóloga, coordenadora de cursos do CESEEP, mestra em Ciências da Religião, professora e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.