Já lá se vão mais de seis meses desde que a pandemia foi reconhecida como flagelo universal que ameaçava a humanidade e o planeta. Todos desde então foram instruídos a ficar em casa, sobretudo os idosos, por serem grupo de risco. No entanto, em São Paulo, pelas ruas e praças onde os moradores de rua vivem e sofrem em meio à intempérie, um senhor de 71 anos circula sem parar. Todos os dias, a cada momento, dia útil, santo ou feriado.
Trata-se do padre Júlio Lancelotti, da arquidiocese de São Paulo. Entrou já adulto no seminário. Após os estudos, ordenou-se e recebeu como missão do então cardeal Dom Paulo Evaristo Arns ser vigário episcopal do povo de rua da arquidiocese. Desde então, assimilou plenamente em sua vida todo o significado da palavra vigário. Oriunda do latim vicariu, seu primeiro e principal significado é: aquele que faz as vezes de outro. Vigário episcopal, padre Júlio passou a ser e representar a Igreja de São Paulo, na pessoa de seu bispo, junto àqueles e àquelas que vivem nas ruas.
Ele não os chama moradores de rua, mas sim “irmãos” de rua. Não diz tampouco que trabalha com eles, pois não são objetos. Diz que convive com eles, como os irmãos convivem uns com os outros. Diante das infinitas necessidades que apresentam os que fazem da rua sua casa, o sacerdote atende desde a fome, o frio, a nudez, até a carência afetiva, o medo, o desespero, a solidão. Olha nos olhos de todos e ali, segundo ele, vê Jesus que disse que tudo que se fizesse ao menor de seus irmãos, a ele mesmo se faria.
Sem nenhum medo do contágio que o vírus pode trazer, padre Júlio toca a cada um, abraça, acaricia, examina suas feridas e os abençoa, impondo as mãos sobre suas cabeças. Cuida de todos, conseguindo bicas de água para que possam higienizar as mãos, dando-lhes máscaras e encaminhando-os aos serviços de saúde quando apresentam febre ou sintomas de doença.
Mas o sacerdote, ao mesmo tempo em que é só ternura e cuidado para com o povo da rua, sabe falar forte e assumir sua vocação de profeta quando se trata de denunciar injustiças e expor as feridas da desigualdade obscena de uma sociedade que descarta pessoas. De uma lucidez impressionante, padre Júlio sabe ler a realidade com olhos críticos, enxergando e denunciando a raiz das injustiças e incriminando os responsáveis pelas mesmas.
Sempre foi criticado e discriminado por aqueles a quem seu discurso, mas sobretudo sua prática incomodava. Recentemente passou a receber ameaças, insultos e agressões mais pesadas. Isso fez com que o cardeal Dom Odilo Scherer, pastor de São Paulo, se solidarizasse publicamente com ele relembrando o Evangelho pelo qual ambos empenham a vida. “Eu estou com ele…quem cuida dos pobres, vai sofrer junto com os pobres também. Sempre foi assim”.
O prefeito Bruno Covas também é seu admirador e agradece que o religioso constantemente denuncie as injustiças na cidade, para que sua administração possa recordar que deve prioritariamente aos mais vulneráveis. Foi oferecida escolta policial ao padre, que delicadamente a recusou, em coerência com a solidariedade aos irmãos de rua. “Então eu fico com a escolta e os moradores de rua ficam com o cassetete, com a tortura? ”
Uma rede de auxílio foi montada ao redor de Júlio Lancelotti. Voluntários o auxiliam em seu trabalho, seja transportando a ele ou aos irmãos de rua pelo trânsito engarrafado da cidade, seja providenciando alimentos, cobertores, roupas e calçados para os que se enfileiram às centenas às portas de sua paróquia, pedindo e esperando. Diante das ameaças por ele recebidas, listas foram passadas e receberam milhares de assinaturas.
Padre Júlio não está sozinho. Tem com ele o povo a quem serve, a Igreja à qual pertence, todos aqueles que hoje lutam por um mundo mais justo e assumem com ele os conflitos a isso inerentes. Sua fidelidade inquebrantável é a Jesus Cristo e ao povo da rua. E para ser fiel a esse compromisso maior, sua energia chega a ser impressionante. Parece uma fonte que nunca seca e faz com que a cada dia, de manhã à noite se repita a cansativa rotina de estar perto dos últimos e dos vencidos, levando seu serviço e seu cuidado. Poucos jovens suportariam o ritmo que o sacerdote já idoso impõe a sua vida.
A caridade de Cristo o constrange, como disse Paulo de Tarso de si mesmo e dos cristãos de Corinto. Nesses tempos de pandemia e em todos os tempos onde a justiça for pisoteada e os pobres estiverem sofrendo será assim. Pois, como diz o Papa Francisco, a Igreja deve ser samaritana. Tal como o samaritano da parábola do evangelho de Lucas 10, 25-37, há que cuidar do ferido à beira do caminho. É preciso curar as feridas, abraçar os sofredores, aquecer os corações, estar próximo… É necessário começar de baixo. Júlio Lancelotti, em nosso país e em nossos dias, é certamente uma testemunha luminosa dessa Igreja que Francisco deseja ardentemente que se faça realidade.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.