Celebrar a Páscoa é reafirmar a nossa fé na ressurreição de Cristo e também na ressurreição de todos os nossos projetos de justiça. A morte é a nossa única certeza de futuro. A postura que temos diante do nosso fim traduz o sentido que damos à vida. Temem a morte aqueles que não conseguiram ainda imprimir à vida uma direção, uma razão de ser. Ou se apegaram demasiadamente a bens e prazeres que lhes adornam o ego.
Outrora, a morte incorporava-se ao nosso cotidiano: morria-se em casa, cercado de parentes e amigos. Em Minas, havia velório com pão de queijo e cachaça, carpideiras e proclama em postes, missa de corpo presente e despedidas no cemitério, celebração de sétimo dia e luto. Em suma, celebrava-se o rito de passagem.
Hoje, o enterro é um produto de consumo. Não raro, morre-se clandestinamente num leito anônimo de hospital e, às vezes, o corpo fica esquecido numa gaveta de um necrotério, como se o falecido fosse uma presença incômoda. Não há choro nem vela, nem fita amarela. E muito menos em tempos de coronavírus, quando os mortos são cremados ou enterrados como se fossem seres anônimos, sem direito ao pranto presencial de parentes e amigos, velório, bênçãos, culto ou missa.
Em tudo, há começo, meio e fim. No entanto, nossa racionalidade, tão equipada de conceitos, esvai-se nos limites da vida. Só a fé tem algo a dizer a respeito desta fatalidade. Se Cristo não houvesse ressuscitado, afirma o apóstolo Paulo, nossa fé seria vã. Mas a vitória da vida sobre a morte arranca da injustiça o troféu da última palavra. No ocaso da existência – lá onde toda palavra humana é inútil alquimia – Deus irrompe como um teimoso posseiro e invade o nosso ser. E, como no amor, não há nada a dizer, só desfrutar.
Na América Latina, morre-se antes do tempo. Aqui a morte não é uma possibilidade remota. Ela nutre o sistema econômico. Por privar milhares de brasileiros de possibilidades reais de vida, é possível entregar aos credores da dívida pública fortunas por dia! Tira-se tudo dos minguados salários dos trabalhadores, através de cirurgias assassinas eufemisticamente denominadas “ajustes fiscais”. Mata-se à prestação, lenta e cruelmente, como se o direito à vida fosse um luxo.
A morte é, pois, uma questão política, assim como a esperança, centrada no mistério pascal, move a nossa luta pela vida, dom maior de Deus. Ora, a ressurreição de Cristo não significa apenas que do outro lado desta vida encontraremos a inefável comunhão de Amor. Diz respeito também à vida nesta Terra. “Vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (João, 10,10).
Não haverá vida em abundância senão pela via das mediações políticas, como a distribuição de renda, a reforma agrária, o investimento em educação e saúde. Minha generosidade pode oferecer, hoje, um prato de comida ao faminto. Amanhã ele terá fome. Só a política é capaz de acabar com o que ela também cria: a fome e a miséria. Nesse sentido, eleger candidatos empenhados “para que todos tenham vida” é um gesto pascal, ressurrecional.
A Páscoa nos convida à interiorização, a meditar de olhos bem abertos. Não é lá no túmulo de Jerusalém que, agora, Jesus ressuscita. É em nosso coração, em nossa solidariedade, em nossa capacidade de enxergá-lo no próximo, em especial nos mais pobres e nos enfermos de coronavírus, nos idosos e vulneráveis, com quem ele se identificou (Mateus 25, 31-46).
Conta o Evangelho que Madalena encontrou o túmulo de Jesus aberto, sem a pedra que o tapava. Hoje, pedra a ser retirada para que a vida floresça é a que pesa em nossa subjetividade, amarra-nos ao egoísmo e nos imobiliza frente aos desafios de solidariedade.
Frei Betto é escritor, autor da biografia de Jesus “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.