Vivemos em tempos em que somos bombardeadas por informações, expectativas e fragmentações que nos afastam de nós mesmas, das outras pessoas e do divino. A santificação, nesse contexto, não pode ser compreendida como um processo de perfeição moral ou de separação do mundo, mas como um retorno a si – um caminho de reconexão com o que há de mais profundo em nossa existência. É um movimento de cura e reintegração, que busca restaurar o vínculo rompido entre corpo, natureza, Deus e comunidade. Ser santificada é, portanto, reencontrar o centro, reatar o laço que nos une ao fluxo da vida e abrir-se à graça que reconcilia o que foi ferido.
A partir de Rita Nakashima Brock pensarei com vocês algumas pistas sobre o pecado. Como teóloga feminista, compreendemos o pecado como algo socialmente e historicamente produzido, os quais nos aguardam tomar a responsabilidade por tal injustiça e acabar com a opressão e sofrimento. Mas, além disso, entendemos que esse pecado histórico-social causa danos em nossa existência, na nossa capacidade de nos relacionarmos conosco, com o nosso próximo, com o mundo e com Deus. A conexão que teríamos como seres viventes é quebrada e desconectada, e assim, o sofrimento emerge. O pecado é um sintoma de um coração quebrado, separado de si, é sobre como somos danificados em nossas relações e não como somos maus, desobedientes ou culpáveis perante Deus. Dessa forma, há uma verdade tão profunda que Rita N. Brock nos deixa: “O pecado não é algo para ser punido, mas algo a ser curado” (Journeys by Heart: A Christology of Erotic Power, p.7). Sempre que houver divisão, haverá sofrimento e conflito em nossas ações.
O pecado é uma ruptura de si. Padre Bede Griffiths constrói o pensamento sobre o pecado a partir da “recusa a reconhecer nossa dependência” (O Retorno ao Centro, p.53), esse isolamento gera um sofrimento e camadas de abismo internos, e por vezes, essa dor é extravasada em formas de violência e morte. O encontro com Cristo, através da Graça, nos recorda que “onde o pecado abundou, superabundou a graça” (Rm 5, 20). Graça como parte da construção de um mundo de justiça. Graça como união de nós com nós, de nós com a humanidade e criação, de nós com o divino. Griffiths ainda nos lembra: “Ninguém peca isoladamente, ninguém sofre isolado dos demais, ninguém é glorificado sozinho. Quando vemos os sofrimentos do mundo, suas desigualdades e injustiças, dentro do padrão do conjunto, em sua relação com a ordem eterna, ‘em Cristo’, só então é que percebemos o seu sentido e justificação: ‘Deus estava em Cristo reconciliando o mundo consigo próprio’ (1Cor 5, 19) (O Retorno ao Centro, p.59).
Reconhecendo o pecado da separação e permitindo-nos reconciliar, em Cristo, com Deus, conosco mesmas, com a Natureza e com a Comunidade, iniciamos um novo modo de viver, há uma metanoia – mudança de rumo, um caminhar em direção ao retorno de si, ao reencontro com o centro do próprio coração. Nesse movimento de reconexão e cura, a vida vai se tornando inteira novamente, e esse processo pode ser compreendido como santificação.
A santificação é esse processo: uma trilha cheia de obstáculos, mas com uma vista linda. Não tem um fim em si, senão o de se embebedar desse amor divino e tornar-se uma só coisa com o Amado. O caminho para a santificação é o amor que nos cura diariamente e que nos chama a sermos portadoras e portadores de um amor eficaz, como dizia Camilo Torres Restrepo – um amor que se traduz em compromisso concreto com a transformação da realidade, que se encarna na luta por justiça e se faz gesto, ação e entrega. Amar eficazmente é fazer da fé um movimento que não se contenta com palavras, mas busca libertar os oprimidos e restaurar a dignidade ferida do mundo. Nesse sentido, o amor que santifica é o mesmo que politiza e humaniza, unindo contemplação e ação, oração e compromisso. Como afirma Bell Hooks: “o amor redime. Apesar de todo o desamor que nos cerca, nada tem sido capaz de bloquear o desejo pelo amor, a intensidade do nosso anseio […] rompendo com nosso senso de isolamento e abrindo a janela da oportunidade, a esperança nos dá uma razão para seguir adiante […]. Renovando nossa fé na promessa do amor, a esperança é nossa cúmplice.” (Tudo sobre o Amor: Novas Perspectivas, p. 247).
O amor reconciliador presente em Jesus Cristo é nosso alvo, assim como um girassol que olha para o sol, e como nos lembra o texto de Hebreus 12,2, para nosso processo de santificação devemos sempre estar “olhando para Jesus, autor e consumador da fé”. A tradição cristã comumente foca na morte, cruz e sangue de Cristo, porém, as teologias feministas apontam para a vida, as práticas e a comunhão de Jesus com o povo, e é nesse processo que nos tornamos mais parecidos e assumimos esse compromisso de sermos santos, não como algo separado do mundo, mas antes, mergulhado no mundo e suas contradições, levando o compromisso radical desse amor eficaz. Quantos santos e santas, mártires da caminhada, temos em nossa América Latina, que deram suas vidas por um amor radical pelo povo e a libertação: “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos” (João 15, 13).
Para Camilo Torres Restrepo: “Porém esse amor ao próximo tem que ser eficaz. […] Nas atuais circunstâncias da América Latina, vemos que não se pode dar de comer, nem vestir, nem alojamento às maiorias. Aqueles que detêm o poder constituem uma minoria econômica que domina o poder político, o poder cultural, o militar e, também, desgraçadamente, o eclesiástico nos países em que a Igreja tem bens temporais. Essa minoria não tomará decisões contra seus interesses. […] Deve-se propiciar, então, a tomada do poder por parte das minorias para que sejam realizadas as reformas estruturais econômicas, sociais e políticas em favor dessas mesmas maiorias. Isso se chama revolução e, se for necessário para a realização do amor ao próximo, para um cristão é necessário ser revolucionário.” (Cristianismo e Revolução, 1981)
Quando retornamos a nós mesmas, mediante a nossa prática espiritual, à santificação, mergulhamos nesse mistério do amor e abandonamos o ego para abraçar a Graça. Os obstáculos da trilha da santificação são muitos, nossos apegos, o sistema de consumo-desejos que vivemos, nosso individualismo, nossa necessidade de controle e ansiedade, a competitividade desenfreada, a inércia mediante à injustiça, entre tantas e outras coisas mais sutis e as grandes coisas barulhentas. Quando estamos presos à essas dinâmicas não vivenciamos a plenitude da santificação que é viver no amor. E esse amor não está livre de conflitos; pelo contrário, viver no amor é arriscar-se. Por isso cantamos com Taizé: “Deus é amor, arrisquemos viver por amor”. Viver no amor é encarnar a profecia que denuncia as políticas de morte e promove a cura das feridas que nos afastam de nós mesmas, dos outros e de Deus. Por isso, continuamos a cantar: “Deus é amor, ele afasta o medo”.
Santificar-se é, afinal, esse retorno constante à vida, ao corpo, à comunidade, ao Deus que habita em nós e em tudo. É voltar ao centro do coração, onde amor e graça se encontram, onde somos reconciliadas com o Todo. É ali, nesse movimento de ida e volta, nesse ritmo do Universo, que descobrimos que o retorno a si é também o retorno a Deus. A partir desse retorno, mediante práticas contemplativas e espirituais, abrimo-nos a ações concretas como expressão dessa santidade permeada pelo amor, tornando-nos instrumentos de cura em um mundo fragmentado pela injustiça e pela ganância. “O amor dá-se, perde-se e torna a encontrar-se em amor, volta a si e torna a dar-se — este é o tema ou desenho do Universo” (Griffiths, Bede. O Retorno ao Centro, p.70). Que possamos, assim, nos perder e nos reencontrar nesse amor radical e eficaz que, ao nos santificar, também santifica o mundo — curando as feridas que nos afastam de nós mesmas, dos outros e de Deus.
Referências
BROCK, Rita Nakashima. Journeys by Heart: A Christology of Erotic Power. New York: Crossroad, 1991.
GRIFFITHS, Bede. O Retorno ao Centro. São Paulo: IBRASA, 1992.
HOOKS, Bell. Tudo sobre o Amor: Novas Perspectivas. São Paulo: Elefante, 2021.
TORRES RESTREPO, Camilo. Cristianismo e Revolução. São Paulo: Global, 1981.
Reprodução de Mag+s Brasil
Angelica Tostes é Teóloga, coordenadora de cursos do CESEEP, mestra em Ciências da Religião e Professora.
















