Texto coletivo Curso latino-americano de formação pastoral 2018
Tradução Português/Espanhol: Odete Vieira Vasconcelos
Para ler em espanhol clique aqui
Ana Julia, Yudalmis , Marina e Deobaldo[1]
“Somos chamados a ser livres, todos para ser filhos e,
cada um de acordo com sua responsabilidade,
a lutar contra as formas modernas de escravidão”.
Papa Francisco[2]
INTRODUÇÃO
Muitas pesquisas foram realizadas sobre as variadas formas em que a escravidão tem se expressado ao longo da história. Esta ficou marcada como o genocídio mais sangrento, em ordem demográfica e cultural, e que hoje é ressignificada mostrando uma nova face, como expressão de violação da dignidade e da liberdade humana.
Uma análise da conjuntura atual mostra-nos uma disputa de sentidos e de narrativas que se movem basicamente no âmbito cultural, expressa em marcadas contradições raciais e religiosas que determinam um pensar e um agir que se concretiza em diversas formas, uma delas é a escravidão moderna.
Conhecer quais são as principais formas e causas da escravidão moderna que afetam a América Latina tem sido o principal objetivo do curso Latino-americano de Formação Pastoral, chamando a tomar consciência do que acontece em nossos países e a estar preparados para denunciar, combater e expor este tema, questionando os novos tempos de desconstrução das conquistas laborais alcançadas ao longo da história.
Um olhar sobre nosso contexto nos faz perceber como esta prática afeta as pessoas mais vulneráveis: mulheres, meninas e meninos, jovens imigrantes da cidade e do campo, sendo vítimas de jornadas de trabalho exaustivas, condições degradantes no ambiente de trabalho, sofrendo assédio e ameaças.
A convocação a buscar perguntas geradoras de diálogo nos ajuda a identificar as tendências das problemáticas sociais, para uma melhor projeção de nossas ações observando a cotidianidade, e vivendo nossas utopias desde um paradigma ético, político e pedagógico libertador.
O neoliberalismo como fonte produtora de desigualdades sociais, constitui uma das principais causas do trabalho análogo à escravidão, é por isso que nossa contribuição deve estar definida no posicionamento dentro das políticas públicas dos direitos civis, econômicos, políticos e sociais que todo ser humano necessita para viver uma vida digna.
Esse texto foi produzido pelos∕as cursistas 2018, desde as anotações individuais e análise de uma comissão, na busca da participação e de observações comuns de todo o grupo. Constitui-se assim, um texto coletivo construído na perspectiva da metodologia da Educação Popular, que é parte integrante dos cursos do CESEP.
CAUSAS DA ESCRAVIDÃO
Construir um argumento sólido sobre a forma como deve se dar a solução dos problemas sociais que experimentam a América latina e o Caribe, tem como fundamento o desenvolvimento de um contexto sociopolítico que, ocasionalmente, prefere a imitação de modelos de desenvolvimento que propiciam o sofrimento do povo, ao invés da construção de um espaço de equidade social, que corresponda à particularidade e problemáticas de cada região. O estado de bem-estar latino-americano e caribenho tem saldos pendentes no que diz respeito aos grupos sociais excluídos.
A escravidão é um dos problemas sociais mais arraigados na história da humanidade e é diferente de acordo a cada contexto social. Desde a época do império romano existem testemunhos do comercio de escravos para trabalhos de diversa índole: trabalho braçal para a agricultura, construção, transporte de carga, servidão com distintos ofícios desde cozinheiros até serviços sexuais.
É indigno que atualmente, embora os estados proclamem a suposta abolição da escravatura e exista a declaração internacional dos direitos humanos desde 1948, subsistam formas contemporâneas de escravidão no mundo, por exemplo, focadas no abuso da infância. Existem diversos organismos e movimentos contra as maneiras modernas do comércio de escravos; não obstante, ainda existem de modo clandestino. É por isso que a difusão da informação contra a escravidão deve permanecer e buscar uma projeção em todos os círculos sociais a nível global.
Trabalho escravo é aquele que trata as pessoas como coisas, os trabalhadores sofrem pressão, têm jornadas de trabalho muito extensas, as condições de trabalho são muito precárias, recebem salários muito baixos e muitas vezes não recebem nenhum dinheiro porque são vítimas da escravidão por dívidas, onde os humanos são privados da liberdade. É um processo ilegal, uma mercadoria disfarçada de curta e longa duração, onde a dignidade é arrebatada e essas vítimas são fortemente discriminadas e desqualificadas.
Todo fenômeno social encerra causas e consequências que repercutem na dinâmica de uma sociedade. A escravidão moderna tem fundamentos econômicos, políticos e sociais que não se podem desvincular do fenômeno da desigualdade, as maiores vítimas da escravidão são afrodescendentes, povos nativos, imigrantes, analfabetos, mulheres, meninos, meninas, trabalhadores assalariados de qualquer setor e muitas pessoas que se encontram em situação de desvantagem social e têm o sonho de encontrar oportunidades de uma vida melhor. A pobreza, o subdesenvolvimento e a exclusão, combinadas com a falta de acesso à educação ou com uma realidade caracterizada pelas escassas, pra não dizer inexistentes, oportunidades de trabalho.
Desafortunadamente o problema ainda persiste em formas mascaradas de escravidão moderna como exploração sexual, trabalho forçado, trabalho infantil, o tráfico de pessoas, entre outros. As guerras também propiciam o aumento das cifras de escravizados, devido a que muitas pessoas são recrutadas sem receber remuneração alguma e são obrigadas a matar.
O sistema capitalista hegemônico que domina nossa organização social, a implementação de projetos que geram o individualismo, uma distribuição desigual dos recursos, privatização dos recursos naturais, uma marcada e visível desigualdade social, são fatores que propiciam a escravidão moderna, um tipo de vínculo social que se sustenta a partir de fortes condicionamentos ideológicos e simbólicos, que têm uma relação perversa e dominante.
A escravidão não é algo particular de uma cultura ou de uma nação: é triste confirmar que se encontra em várias regiões. Para denunciar algumas, podemos falar dos meninos e meninas que trabalham nas ruas de diferentes países em desenvolvimento e são exploradas por adultos ou meninos mais velhos, que os privam dos serviços de educação e saúde, lhes pagam o mínimo sob a forma de um pouco comida e condições precárias de vida.
É alarmante conhecer como as práticas da exploração e da escravidão são naturalizadas em muitos âmbitos culturais, o que constitui um desafio para as sociedades atuais em romper o silêncio, falar da escravidão, fazer uma análise, condená-la e promover programas de informação e capacitação.
Os países latino-americanos não devem lutar sozinhos para alcançar níveis de proteção social aceitáveis, devem-se planejar estratégias, que em total coerência com a ação possam erradicar a pobreza e lograr a igualdade social, o estado deveria converter-se em um garantidor desses direitos para uma vida espiritual e material digna.
TRABALHO ESCRAVO NA AMÉRICA LATINA E NO CARIBE
A escravidão não foi abolida, mas sim transformada, já que o sistema neoliberal colocou um disfarce que não permite que aquele que vive sob ela, o perceba, o que a situa no século XXI como escravidão moderna.
Haiti foi o primeiro país da região da América central a abolir a escravatura tradicional, entretanto, é o que possui a maior percentagem de sua população submetida à escravidão moderna; em sua maioria meninos e meninas de famílias pobres que são enviados a trabalhar com conhecidos ou familiares abastados. Brasil foi o último país a abolir a escravatura legal e continua com a ilegal, tendo aproximadamente 750 mil escravos trazidos da África. Desde então, as formas de escravidão foram mascaradas, no entanto, ocorrem até os tempos atuais, especialmente com os migrantes (externos e internos).
Milhões de pessoas são escravizadas e colocadas em situação de exploração; são submetidas e não podem negar-se, pois são vítimas de fortes ameaças, causando altos níveis de violência física, psicológica e religiosa, chegando até a provocar a morte. Outro impacto é a indústria de maconha e outras drogas que aprisionam as famílias: jovens, meninas, meninos e adultos. As famílias perdem os valores humanos, já que quem executa estas atividades é capaz de tirar do seu caminho, a qualquer um que o impeça de lograr seu objetivo de vender ou consumir essas drogas.
Muitos de nossos povos da América latina e do Caribe sofrem a situação de migração já que são vítimas, em seus países, de forte escravidão, de exploração e desemprego, levando uma vida de pouca qualidade humana, se veem na obrigação de transladar-se a outros lugares em busca de uma vida melhor, expondo-se ao tráfico de redes mafiosas. No âmbito da exploração laboral vemos como os trabalhadores de cana-de-açúcar vivem de uma maneira aviltante, com poucas possibilidades de uma vida digna nas comunidades em que vivem. Outra área de exploração se dá no setor de moda, onde as costureiras são exploradas até o limite e poucas são as que conseguem a liberdade e a autonomia, especialmente as imigrantes.
O mesmo acontece no setor da construção; os empregadores de países pobres pagam um salário muito baixo, os tiram de sues países sem documentos que lhes permitam a estadia no país estrangeiro, e assim que termina a obra os ameaçam em chamar a imigração e os devolvem a seu país sem o pagamento de seu salário.
Falar do trabalho forçado de meninas e meninos e da maneira como o sistema capitalista os explora até o ponto de que não tenham tempo, nem sentido, nem desejos de estudar. No âmbito da escravidão doméstica vemos como alguns casais estão em uma relação forçada ou por conveniência econômica que os prendem a um ambiente familiar sem amor. Muitas mulheres e homens, para poderem sustentar suas famílias, se veem obrigados a venderem seu corpo para poderem levar o pão de cada dia a seus lares.
Outras formas de escravidão, mais subjetiva e não menos graves, podem ser vistas no impacto que os meios de comunicação provocam em homens e mulheres, com o modelo ideal de corpos e estilo de vida, escravizando-os pelo desejo de consumo, de concorrência e de poder.
Haveria tantos outros exemplos que não cabem neste texto, mas todos eles nos movem a repensar sobre os conceitos nos quais se baseiam nosso trabalho, assim como as ações em busca de mudança.
CONCLUSÃO
Na América latina e no Caribe é visível a existência hoje, das marcas deixadas pela escravidão, o trabalho escravo continua porque o sistema capitalista vigente pressupõe essa servidão a baixo custo como apoio a seu desenvolvimento. É uma escravidão perversa, pois esconde a realidade, conduzindo o ser humano a péssimas condições de trabalho, com salário baixo, falta de moradia decente, de energia, de escola de qualidade, de água potável, etc.
A escravidão hoje adquire novos contornos e exige de nossos militantes políticos, agentes sociais e de pastorais uma visão crítica para a leitura da realidade, assim como instrumentos pedagógicos que nos permitam adotar estratégias para a ação de resistência e a busca de caminhos para dar fim ao trabalho escravo e qualquer outra forma que queira arrebatar a dignidade dos seres humanos.
Este é um de nossos desafios na contemporaneidade: o de ajudar a criar caminhos para a construção de uma sociedade justa e solidária. Como afirma Fidel Castro Ruiz: “Algo precisa ser feito para salvar a humanidade, outro mundo é possível”.
As questões apresentadas pelos cursistas 2018 mostram a preocupação pelo avanço do desmonte de direitos civis, expresso nas leis que são feitas por aqueles que têm o poder econômico ou por aqueles que financiam as campanhas eleitorais. Na maioria dos países da América latina e do Caribe temos leis constitucionais que garantem os direitos das pessoas, no entanto, encontram-se formas de burlar estas leis, deixando à deriva, milhões de pessoas, na dependência do trabalho nos moldes de escravidão ilegal e, justificável ante o caos criado nos campos econômico e político, tornando algo natural a exploração e dando continuidade a um sistema de escravidão que aqui denominamos de escravidão moderna.
Os estudos e o intercâmbio de saberes e experiência de cada país presente no curso nos qualifica para o trabalho social e pastoral e nos anima a continuar as ações de denúncia da escravidão em todas as suas formas e de anúncio de um novo modo de viver entre os humanos e destes com a natureza.
Texto elaborado pelos participantes do Curso latino-americano de Formação Pastoral∕2018 do Centro Ecumênico de Serviço à Evangelização e Educação Popular – CESEP. A sistematização dos conteúdos trabalhados forma parte da metodologia do curso e é elaborada por uma comissão que organiza as questões e principais ideias dos demais participantes do curso: Jesus Rafael Ramón Quiroz Osório (México), Alejandro Moises Condoro e Máximo Uyardo Sullcany (Bolivia), Marcos Aparecido de Morais, Terezinha Manoel Martinho Pacheco (Guatemala), Perciliana das Dores Santana, José Alamiro Andrade da Silva e Marilde Arenhardt (Brasil).
[1] Comissão organizadora do texto: Ana Julia González Aguilera y Yudalmis Ramos Borges (Cuba), Deobaldo Barbosa da Silva (Brasil) Marina Herenia Taveras Morales (Republica Dominicana).
[2] Papa Francisco, Jornada Mundial da Paz (1 janeiro 2015).