Não obteve repercussão na mídia brasileira a Exortação Apostólica Amoris Laetitia (Alegria do amor) do papa Francisco, divulgada este ano. É o resultado dos Sínodos da Família, reunidos em Roma em 2014 e 2015. Trata de moral sexual e relações matrimoniais.
A importância do documento reside na mudança de óptica quanto à ética conjugal. Francisco abandona o tradicional moralismo que, através de normas absolutas, pretendia reger o matrimônio de todos os católicos em qualquer época e lugar do mundo, sem levar em conta a primazia da consciência individual e os contextos históricos e culturais.
O método da Amoris Laetitia (AL) é indutivo, baseado, não em deveres, mas em virtudes; não na lei, e sim na consciência individual. Já não trata o casamento como instituição matrimonial congelada no tempo e no espaço, e sim como relação de pessoas em evolução, regidas pela “lei da gradualidade”, na expressão de João Paulo II, ou seja, a pessoa “conhece, ama e cumpre o bem moral segundo as diversas etapas de crescimento” (AL 295).
A Exortação Apostólica valoriza a atitude pastoral diante da “variedade inumerável de situações concretas” (AL 300). E descarta a tradicional atitude doutrinária que considerava a lei acima da tolerância e o castigo prioritário à misericórdia.
Desde o Concílio de Trento, no século XVI, a lei normativa do matrimônio tem sido o Direito Canônico. Francisco agora desloca as relações conjugais do terreno do direito para a esfera das virtudes. O direito exige submissão à lei. A virtude, o compromisso de viver conscientemente a vida cristã. Frisa que o matrimônio é um desafio vitalício, que “avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus” (AL 122).
Embora o documento fuja de qualquer analogia entre os casamentos hetero e homossexual, o papa sublinha que a pessoa LGBT “deve ser valorizada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando-se evitar qualquer sinal de discriminação injusta” (AL 250).
Dentro dessa “gradualidade” ou moral de situação é possível que, no futuro, a Igreja Católica aceite matrimônios homossexuais como, hoje, já admite que participem da eucaristia divorciados e recasados sem anulação canônica. Para Francisco, a eucaristia “não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos.” (AL, nota de rodapé 351).
O fio condutor desse avanço ético é a autoridade e a inviolabilidade da consciência individual, que se aplicam a qualquer pessoa frente a uma situação que exige decisão moral. Este é um princípio tradicional da doutrina católica, porém ausente dos documentos do magistério eclesiástico nos últimos 40 anos, embora o Concilio Vaticano II tenha ressaltado que “no fundo da própria consciência o ser humano descobre uma lei que não se impôs, mas à qual deve obedecer. A sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado” (Gaudium et spes 16. Cf. Dignitatis humanae 2).
Ao enfatizar a “misericórdia pastoral” (AL 307-312), Francisco recusa “uma nova normativa geral de tipo canônico, aplicável a todos os casos” (AL 300). Deve a Igreja “formar as consciências, não pretender substituí-las” (AL 37).
O papa considera que “a consciência das pessoas deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não realizam objetivamente a nossa concepção do matrimônio” (AL 303).
Em Amoris Laetitia Francisco não abre a porta, mas nos entrega a chave. Não profere julgamento, mas incentiva a virtude: “Hoje, mais importante do que uma pastoral dos fracassos, é o esforço pastoral para consolidar os matrimônios e, assim, evitar rupturas” (AL 307).
O foco na valorização da consciência individual é repetido 20 vezes no documento, ecoando o Concílio Vaticano II, que acentua que ela é “o centro mais secreto e o santuário do ser humano, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (Gaudium et spes 16).
O Vaticano II se encerrou em 1965. Meio século depois, Francisco, o papa da misericórdia, ousa tirá-lo do papel e levá-lo à prática pastoral da Igreja Católica.
Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.